Daniel Cariello**
O piloto
“Essa chegada sempre mexeu
comigo: passar sobre o Maracanã, ver o Cristo Redentor, sobrevoar a Baía de
Guanabara e pousar de frente para o Pão de Açúcar. Já tem 22 anos que piloto
aviões e 15 que não venho aqui. Nesse tempo, fiz milhares de decolagens e aterrissagens,
conheci aeroportos do mundo inteiro, sobrevoei campos de arroz chineses,
desertos africanos, cordilheiras esbranquiçadas de neve. Vi muita coisa, mas
voltar ao Rio pelo Santos Dumont é mais forte que tudo. Dá um frio na barriga
da porra, ainda mais nessas circunstâncias. Engraçado, daqui de cima sou capaz
de jurar que meu olhar cruzou com um dos sujeitos daquela varanda.”
O escritor
Nunca havia sentado nessa
varanda. Diria que é escondida, mas, a julgar pela ocupação de todas as mesas,
acho que era segredo apenas para mim. Um casal na mesa da frente alterna beijos
na boca e goles de uma bebida indecifrável, saída de uma garrafa térmica.
Levanto o olhar e vejo o Castelinho do Flamengo, construção eclética de gosto
duvidoso, porém de valor histórico indiscutível. Mais atrás, vejo um avião
sobrevoando a Baía de Guanabara. Por um segundo, sou transportado para a cabine
do piloto. Esse tipo de coisa às vezes acontece comigo, desligo-me do meu corpo
e viajo instantaneamente, já nem esquento mais. O que é estranho é perceber
gente como aquele senhor do prédio ao lado, me observando pela janela e agora
me mostrando com a câmera do celular.
O observador
“Não, não vou. Eu sei, seria bom,
mas não consigo. Além do mais, preciso limpar a casa, está horrível… Já limpei
ontem, mas e daí? A poeira entra todos os dias pela janela, a fuligem dos
carros sobe e o chão fica numa sujeira de dar dó. Não tem nada de obsessão, que
conversa é essa? Queria mesmo era não ter que encarar essa situação toda, como
aquele carinha de camiseta do Luiz Gonzaga sentado na varanda daquele centro
cultural, rabiscando num bloco de notas, olhar distante, despreocupado da vida.
O quê? Não quis te deixar falando sozinho. Desculpe, tava com a cabeça meio
longe. Não, não sei quem é o cara de camiseta do Luiz Gonzaga. Peraí, vou virar
a câmara pra você ver se conhece. Conhece?”
O interlocutor
“Mas, você precisa vir. A casa
está brilhando, dá pra ver daqui. E você já faxinou ontem. Que obsessão por
limpeza! Tem coisa mais importante nesse momento do que passar pano, e você
sabe disso. Já tô aqui, ele chega daqui a pouco, e você sabe como é importante
te ver. Ei, tá escutando? Tô falando sozinho… Não entendi nada, o que tem a ver
esse escritor com camiseta do Luiz Gonzaga? Você o conhece? Pela câmera não dá
pra ver bem, mas a cara dele me é familiar. E agora parece que ele olhou bem no
fundo dos meus olhos, uma sensação meio incômoda. Olha, preciso desligar, o
avião aterrissou.”
O piloto
Aterrissamos. Tantos anos sem
pisar aqui. Tantas coisas inacabadas por…
O escritor
Ok, não funcionou. Vou arrancar
essa folha e começar uma nova crônica. Vamos lá. O que o piloto daquele avião
poderia estar pensando? E outro, por que continua a me observar da janela?
Talvez seja melhor trocar os personagens. Ou talvez o personagem seja eu.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br
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