quinta-feira, 18 de junho de 2015

OLHARES*


Daniel Cariello**

O piloto
“Essa chegada sempre mexeu comigo: passar sobre o Maracanã, ver o Cristo Redentor, sobrevoar a Baía de Guanabara e pousar de frente para o Pão de Açúcar. Já tem 22 anos que piloto aviões e 15 que não venho aqui. Nesse tempo, fiz milhares de decolagens e aterrissagens, conheci aeroportos do mundo inteiro, sobrevoei campos de arroz chineses, desertos africanos, cordilheiras esbranquiçadas de neve. Vi muita coisa, mas voltar ao Rio pelo Santos Dumont é mais forte que tudo. Dá um frio na barriga da porra, ainda mais nessas circunstâncias. Engraçado, daqui de cima sou capaz de jurar que meu olhar cruzou com um dos sujeitos daquela varanda.”
O escritor
Nunca havia sentado nessa varanda. Diria que é escondida, mas, a julgar pela ocupação de todas as mesas, acho que era segredo apenas para mim. Um casal na mesa da frente alterna beijos na boca e goles de uma bebida indecifrável, saída de uma garrafa térmica. Levanto o olhar e vejo o Castelinho do Flamengo, construção eclética de gosto duvidoso, porém de valor histórico indiscutível. Mais atrás, vejo um avião sobrevoando a Baía de Guanabara. Por um segundo, sou transportado para a cabine do piloto. Esse tipo de coisa às vezes acontece comigo, desligo-me do meu corpo e viajo instantaneamente, já nem esquento mais. O que é estranho é perceber gente como aquele senhor do prédio ao lado, me observando pela janela e agora me mostrando com a câmera do celular.
O observador
“Não, não vou. Eu sei, seria bom, mas não consigo. Além do mais, preciso limpar a casa, está horrível… Já limpei ontem, mas e daí? A poeira entra todos os dias pela janela, a fuligem dos carros sobe e o chão fica numa sujeira de dar dó. Não tem nada de obsessão, que conversa é essa? Queria mesmo era não ter que encarar essa situação toda, como aquele carinha de camiseta do Luiz Gonzaga sentado na varanda daquele centro cultural, rabiscando num bloco de notas, olhar distante, despreocupado da vida. O quê? Não quis te deixar falando sozinho. Desculpe, tava com a cabeça meio longe. Não, não sei quem é o cara de camiseta do Luiz Gonzaga. Peraí, vou virar a câmara pra você ver se conhece. Conhece?”
O interlocutor
“Mas, você precisa vir. A casa está brilhando, dá pra ver daqui. E você já faxinou ontem. Que obsessão por limpeza! Tem coisa mais importante nesse momento do que passar pano, e você sabe disso. Já tô aqui, ele chega daqui a pouco, e você sabe como é importante te ver. Ei, tá escutando? Tô falando sozinho… Não entendi nada, o que tem a ver esse escritor com camiseta do Luiz Gonzaga? Você o conhece? Pela câmera não dá pra ver bem, mas a cara dele me é familiar. E agora parece que ele olhou bem no fundo dos meus olhos, uma sensação meio incômoda. Olha, preciso desligar, o avião aterrissou.”
O piloto
Aterrissamos. Tantos anos sem pisar aqui. Tantas coisas inacabadas por…
O escritor
Ok, não funcionou. Vou arrancar essa folha e começar uma nova crônica. Vamos lá. O que o piloto daquele avião poderia estar pensando? E outro, por que continua a me observar da janela? Talvez seja melhor trocar os personagens. Ou talvez o personagem seja eu.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

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