Daniel Cariello**
Na fila do cartório, ele achou
que a havia visto. Mas não, não podia ser. Diziam que ela se mudara pra outra
cidade. Outro país, até. Ele escutara boatos de que ela teria entrado em um
convento ou virado aeromoça, o que pra ele dava no mesmo.
Mas era incrível, o nariz era
muito parecido com o dela, aquela curvinha arrebitada. Ele se lembrava bem do
nariz, ponto proibido de tocar, terminantemente interditado, pois ela sentia
muitas cócegas.
- Vinte e nove, vinte e nove,
quem é o vinte e nove?
A funcionária do setor de
autenticação olhava com ar desolado aquele amontoado de gente, provavelmente
sabendo que chegaria mais uma vez tarde em casa. E ele, geralmente solidário
com a miséria alheia, ao menos na intenção, não estava preocupado com a novela
que a atendente perderia naquela noite. Seu pensamento, bem como todos seus
sentidos, tinham um único alvo: a moça da fila, localizada sete ou oito
posições à frente.
Ela soltou os cabelos presos. O
movimento era idêntico ao de quinze anos atrás, mas o comprimento das madeixas
havia mudado. Antes, chegavam no meio das costas. Agora, mal passavam a linha
do ombro.
Puxa vida, já faz tanto tempo,
ele pensou, e tudo durou exatamente três anos, dois meses, quatro dias e duas
horas cravadas. Ele sabia os números, datas, lugares, canções e sabores de cor.
Só não sabia, nunca soube, por que tudo havia acabado.
Ela se virou para buscar um papel
no fundo da bolsa e ele teve certeza de que era realmente seu antigo amor.
Estava tão linda quanto em sua lembrança congelada. Os mesmos olhos um pouco
puxados e estrábicos, a mesma boca carnuda, escondendo uma arcada tão
perfeitamente alinhada que poderia figurar em um comercial de pasta de dentes,
as mesmas sobrancelhas cuidadosamente alinhadas, as mesmas três argolas em uma
orelha e duas na outra. Tudo exatamente como antes.
- Trinta e dois, o trinta e dois
tá aí?
Era ela o trinta e dois. Tirou um
envelope e entregou pra moça copiar e autenticar. A atendente resolveu tudo de
forma eficiente e automática, como os funcionários dos cartórios geralmente
fazem. Não sorriu e nem fez cara feia. Entregou o pacote de volta, uma notinha
para o pagamento e retribuiu o agradecimento.
- Trinta e três, cadê o trinta e
três, hein? Trinta e três.
Ele não poderia deixá-la escapar
sem antes falar algo, qualquer coisa. Quando pensava em como iria abordá-la,
ela tropeçou, como sempre fazia, e esparramou os papéis pelo chão. Ele, mais do
que depressa, abaixou-se para recolhê-los. Ela também. Ele pegou antes o
documento autenticado.
- Certidão de casamento? Você
casou?
A frase saiu em voz alta. E no
mesmo instante seus olhares se cruzaram. Ela, que ainda não o havia visto,
descobriu-o com um misto de surpresa e horror. Ele, que não sabia da nova vida
de sua eterna amada, permaneceu petrificado. O que os dois pensaram nesse átimo
só eles sabem, mas ela juntou desordenadamente a papelada e apressou-se em
alcançar a porta de saída.
Pela parede de vidro ele a viu
enxugar uma lágrima. E ela nem percebeu que a certidão ficara com ele.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br
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