Daniel Cariello**
Tio Dédalo
chegou mais uma vez voando pela janela, que vivia aberta pra aliviar o calor
inclemente da Casa Torta. “Mas esse rapaz não aprende nunca? Um dia ainda se
esborracha”, resmungou a avó, Dona Florinda. “Basta a fenestra estar fechada e
ele se arrebenta inteiro. Por que não entra pela porta ou pela chaminé, como
todo mundo?”.
Sob ovações
das crianças, cambalhotou antes de aterrissar. Sentou-se no sofá aparafusado ao
solo e deu ao caçula Nino uma piscada de olho e um pote cheio de fumaça.
— Pra você!
Vai gostar.
O pequeno se
colou ao regalo e saiu gritando pela Casa.
—
Pai, pai! O tio trouxe um pedaço de nuvem só pra mim! Já posso criar minhas
próprias chuvas e tempestades!
— Isso é
ótimo. Mas, ó, não faça nevar na sala, sua mãe morre de frio, respondeu,
afagando o menino e retornando ao subsolo, onde se empenhava em um projeto
secreto. O fracasso do anterior, o lava-cachorro, continuava a perturbá-lo. E
mais ainda o labrador Speed, que nunca se recuperou do banho a 200 r.p.m..
Nino voltou
correndo à sala e ainda conseguiu acenar para Dédalo, que já decolava
novamente. O petiz também não parou ali. Pegou os gêmeos pelas mãos e os levou
a seu quarto.
Como sempre, o
tio voador trouxera presentes a todos os sobrinhos. Lua ganhou uma flor, um
enorme dente-de-leão, coberto por uma cúpula de vidro: “É pra soprá-la quando
todo mundo estiver triste”. Peri tirou do bolso um objeto protegido por um
lenço de tecido. Pediu para fecharem as cortinas e apagarem a luz. No escuro,
revelou uma pedra azul perfeitamente redonda e tão brilhante que transformou em
dia o breu do quarto. Jamais deveria se separar dela. E nunca, nunca mesmo,
utilizá-la sem verdadeira necessidade.
O relógio de
parede tocou cinco badaladas. No momento em que deveria haver uma sexta,
ouviu-se um baque seco. As crianças abriram a porta e viram a avó estatelada no
chão. Sentaram-se ao lado e a aguardaram se levantar, alisar o vestido com as
mãos e continuar a subida pela estreita escada que levava ao quartinho do 3º
andar. Speed foi atrás, escorregando e voltando um degrau a cada dois vencidos.
— Ele quer me
matar. O pai de vocês me colocou lá em cima de propósito, sabe que eu não tenho
mais o equilíbrio de outrora. Não vai com a minha cara porque eu não gosto
dessas baldrocas que ele passa o tempo todo maquinando. Se o avô de vocês não
tivesse desaparecido, tudo seria diferente por aqui. Se ao menos eu soubesse
por onde você anda, Floriano, se você pudesse nos...
O fio de voz
sumia à medida que ela suplantava os níveis. E foi definitivamente abafado pelo
ganido solto pelo cachorro ao ter seu rabo imprensado pela porta. Dona Florinda
bufou, enxotou o animal e deu quatro voltas na chave.
Na manhã
seguinte, a Casa Torta amanheceu calada. Na mesa do café, as bocas falavam
mudez. Os pássaros pousavam à janela e piavam o silêncio. A avó e suas
reclamações ainda descansavam das queixas da véspera, e não haviam descido para
o desjejum.
—“A velha deve
estar dormindo, aquela encostada”, pensou o pai.
— “Deixa de
implicância. A pobre tomou conta de mim a vida inteira, agora eu cuido dela.”,
respondeu a mãe, por telepatia, um novo dom no repertório dos Monteiro.
— “Vocês dois!
Parem essa discussão eterna. Vamos acordá-la. Hoje é dia de feira e a vó não perde.
Acho que paquera o floricultor.”, decretou Nino.
A família
subiu as escadas. Nino puxou a fila, seguido do pai, da mãe, dos gêmeos e de
Speed, que ia de maneira invertida, as patas traseiras primeiro. Bateram sem
resposta. Tentaram novamente e nada. O pai trouxe do subsolo o pesado baú com
todas as chaves que possuíra: do castelo de brinquedo da infância, da
garçonnière dos anos de solteiro, do laboratório de mecânica da vida adulta,
todas. Testou uma por uma, pacientemente, sem sucesso.
— “Aposto que
a coroa escondeu a chave reserva!”, esbravejou mentalmente.
— “Chega de
pegar no pé dela”, defendeu a mãe. “Vamos chamar o Dédalo”.
Nesse
instante, o tio entrou pela janela do corredor, as mãos na frente, como se
mergulhasse de cabeça em uma piscina. Todos aplaudiram de maneira breve e
contida, pois a situação era delicada.
Ele logo
percebeu o acontecido. Saiu para examinar a janela de Dona Florinda. Estava
fechada. Escancarou-a com um golpe. O quarto continuava imerso em escuridão, a
luz externa clareando apenas a chave repousada na fechadura. Girou-a e deixou a
família tomar o aposento. As trevas permaneciam tão indevassáveis quanto o
silêncio.
Peri sacou do
bolso o lenço onde escondera a pedra azul. Descobriu-a e preencheu o cômodo com
uma luz arrebatadora, vista até pelo floricultor, que trabalha contemplando a
colina da Casa Torta.
O brilho
revelou a velha. Estava imóvel, dois palmos acima da cama, na mesma posição em
que foram encontradas a sua mãe, a mãe da sua mãe e a mãe da mãe de sua mãe.
Nino abriu seu pote e deixou sair a nuvem, que transportou a avó pela janela.
Lua retirou a cúpula e soprou o dente-de-leão. As pétalas, multiplicadas aos
milhões, levaram toda a família pelos céus, para acompanhar o último voo de
Dona Florinda. Bem ao longe, percebia-se uma doce melodia barroca.
* https://www.facebook.com/cartasdaguanabara
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**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br
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