sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O MENINO QUE COMIA VENTO*


Daniel Cariello**

Todos os dias, fizesse chuva ou sol, Bento banhava-se no rio. Com passo curto, embrenhava-se na mata atrás da quitanda e começava a se despir logo depois da Árvore Mãe. Jogava as roupas displicentemente no grande rochedo e de lá lançava-se à água. Jamais experimentava a temperatura antes, pois era invariavelmente fria. Jamais olhava se havia outras pessoas no local, porque estava sempre só. Ali era o seu santuário secreto.
Atravessava o rio pulando em pedras submersas. Quem olhasse de longe teria a impressão de vê-lo saltar sobre as águas calmas, com a leveza do bailarino que sonhava ser e a desenvoltura da criança que ainda era. Falava com os passarinhos, testemunhas de seu mergulho matinal. Inventava canções e poemas sobre árvores, pedras e águas, sobre sol, vento e chuva.
De todos seus pequenos rituais, havia um preferido. Após o banho matinal, subia na Árvore Mãe com a agilidade de um mico. De cima do último galho, esperava o vento soprar mais forte e, então, cerrava os olhos e abria fartamente a boca. Quando sentia os pulmões tomados de ar, unia os lábios e assim permanecia por longos instantes. Ao fim de duas ou três repetições, abria os braços e permitia-se balançar, como fosse um galho, confundindo-se com a natureza ao redor, fazendo parte dela.
Bento estava sempre descabelado e descalço, vestindo uma de suas camisetas furadas. Apesar do apetite voraz, era magrela de se ver as costelas. E tinha tanta energia que a mãe brincava que ele havia sido amamentado com leite de leoa. Seria uma criança igual às outras de sua idade, se possuísse amigos e falasse com os outros.
Na escola, apesar das notas razoáveis, julgavam-no um misto de bobo e louco. Era alvo de piadas, mas não ligava para as provocações e ainda mantinha um permanente sorriso no rosto, o que lhe rendeu o apelido de Bobento.
Movidos pela curiosidade sobre aquele menino preso em seu próprio mundo, os colegas de classe decidiram segui-lo depois da aula, acompanhando seus passos de longe. Frustrando os perseguidores, Bento voltou para casa e por lá ficou.
No dia seguinte, pouco depois da aurora, já estava tomando café da manhã em pé. Bebeu o leite de um fôlego só, comeu duas bananas, mordeu repetidamente o pão com queijo e saiu para a rua. Como sempre, a mãe perguntou onde ele ia. E, como sempre, recebeu um beijo por resposta, resignando-se a lembrá-lo que ainda havia os deveres da escola a fazer.
Dois garotos da escola haviam feito tocaia perto da casa e o seguiram até o seu santuário. Escondidos, impressionaram-se com a coragem com que ele pulou do rochedo direto na água gelada. E assustaram-se quando o viram bailar nu sobre o rio. Um quis gritar, mas o outro tapou sua boca, havia mais a descobrir.

Observaram cada movimento, anotaram as canções e poesias improvisadas, prenderam o riso quando o viram confabular com os pássaros (mas admiraram-se de constatar que ele tinha uma voz). Já preparando a debandada para compartilhar as novidades com os outros, viram-no se dirigir determinado à maior árvore das redondezas.
Apostaram se conseguiria trepá-la, os dois concordando que não. Espantaram-se ao descobrir que ele não somente era capaz, mas o fazia com muita habilidade.
A sequência de assombros vividos pela dupla já se transformava em fascínio, quando Bento alcançou a copa, fechou os olhos, abriu a boca e se entregou ao seu ritual. Completou-o uma vez. Ao reiniciá-lo, um dos garotos berrou lá de baixo: “Ei, Bobento, que maluquice é essa de engolir vento? É por causa de todo esse ar na barriga que a sua voz nunca sai lá na escola?”. Os dois riram com tanta vontade que espantaram os bichos ao redor. Bento sentiu-se tão devassado, tão desprotegido, tão desesperado que desceu desembestadamente e meteu-se na mata, sem recuperar as roupas.
À tarde, a escola inteira aguardava a chegada do menino que dançava sobre as águas, falava com bichos, inventava canções e comia vento. Todos estavam ansiosos para empregar os apelidos e piadas já criados para a ocasião. No entanto, Bento não apareceu. Também não voltou pra casa. E não foi visto na cidade no dia seguinte. E nem no outro e no outro e em tantos outros.
A televisão noticiou o sumiço do garoto. O jornal estampou sua foto. A rádio pedia informações sobre seu paradeiro. A cidade mobilizou-se para encontrá-lo, mas o desaparecimento virou notícia velha e todos voltaram às próprias vidas.
Meses mais tarde, um vendaval quebrou a monotonia de uma manhã de outono. O temporal pegou desprevenidos moradores e animais, que correram para o abrigo mais próximo. A mãe de Bento saiu para recolher as roupas do varal e ficou petrificada ao ver seu filho nu, em cima de uma árvore.
— Bento... ¿Qué estás haciendo ahí?
— Vim te ver.
— ¿Por dónde anduviste, niño? Te busqué por todas partes. Rodé el mundo y nadie me daba noticia ¡Mi Dios bendito!
— Eu tô bem, mãe.
— Baja. Ven a darme un abrazo. Debes tener frío. Vámonos a casa. Debes tener hambre. Ay, mi Dios bendito. Hay sopa calientita. Ven a darme um beso. Vístete. Baja de ahí mi niño. Ven acá.
O vento soprou novamente e a imagem da criança foi dissipando. A mãe se jogou no chão.
— Não fique triste, mãe, encontrei meu lugar. Agora eu sou a natureza, eu sou a terra e o céu, sou os pássaros e os peixes. Agora eu sou o próprio vento.
— ¿Qué te hicieron? Ven a casa, mi Bento...
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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