Daniel Cariello**
Era o réveillon de 1984. Ou o de
1985. Tenho dúvida na data porque passávamos quase todas as viradas de ano no
apartamento das tias avós, que moravam em plena Avenida Atlântica, em frente à
praia de Copacabana.
O rito anual era seguido à risca:
jantávamos em família, assistíamos à corrida de São Silvestre, que naquela
época acontecia à noite, com meu pai e meu avô prometendo participar da edição
seguinte, e descíamos à praia para ver os fogos de artifício. Meus irmãos e eu
fazíamos sempre questão de levar à areia os coloridos balões de ar
infalivelmente presenteados pelo vizinho, cabeleireiro que cuidava das madeixas
de incontáveis artistas e personalidades, famoso por suas habilidades com a
tesoura e por suas homéricas festas de fim de ano.
Já estávamos reunidos à mesa
quando uma senhora maquiada, usando um exuberante vestido, abriu a porta e
entrou, com os braços levantados, os indicadores apontando para o alto e a boca
aberta, em posição de alguém que parecia prestes a entoar “adeus ano velho,
feliz ano novo” a plenos pulmões.
Ficamos admirando a aparição, meu
avô com um pedaço de bacalhau espetado em um garfo e parado em frente à boca,
minha avó servindo vinho sem se dar conta de que a taça já transbordava, a
família estática, como uma exposição de Madame Toussaut.
A invasora só percebeu que
entrara no apartamento errado quando chegou ao meio da sala. Sem perder o
rebolado, rodopiou como um Michael Jackson e saiu pela mesma porta que entrara.
Uma das tias quebrou o silêncio.
- Gente, era a Rogéria, a
travesti?
- Acho que sim – Respondeu a
outra.
Sem entendermos o ocorrido,
retornamos ao jantar. Os adultos concordavam que, tomando por aquela entrada
triunfal, as festas do vizinho deviam fazer jus à fama que possuíam.
Quando já atacávamos a sobremesa
e nos preparávamos para assistir à largada da corrida, alguém tocou a
campainha. Era novamente a Rogéria, trazendo rosas, que combinavam
perfeitamente com seu sorriso meio constrangido, e um prato, coberto por um
papel.
- Oi, pessoal, lamento ter
entrado sem bater. Me enganei de porta. Pra me desculpar, trouxe essas flores e
um pouco de peru. Está ótimo. Um abraço a todos e um feliz ano novo!
- Feliz ano novo! – Respondemos,
em um coro descoordenado.
Já saciados, ninguém tocou no
peru da Rogéria. Mas as rosas foram ofertadas a Iemanjá, pouco depois.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br
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