sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O PERU DA ROGÉRIA*


Daniel Cariello**

Era o réveillon de 1984. Ou o de 1985. Tenho dúvida na data porque passávamos quase todas as viradas de ano no apartamento das tias avós, que moravam em plena Avenida Atlântica, em frente à praia de Copacabana.
O rito anual era seguido à risca: jantávamos em família, assistíamos à corrida de São Silvestre, que naquela época acontecia à noite, com meu pai e meu avô prometendo participar da edição seguinte, e descíamos à praia para ver os fogos de artifício. Meus irmãos e eu fazíamos sempre questão de levar à areia os coloridos balões de ar infalivelmente presenteados pelo vizinho, cabeleireiro que cuidava das madeixas de incontáveis artistas e personalidades, famoso por suas habilidades com a tesoura e por suas homéricas festas de fim de ano.
Já estávamos reunidos à mesa quando uma senhora maquiada, usando um exuberante vestido, abriu a porta e entrou, com os braços levantados, os indicadores apontando para o alto e a boca aberta, em posição de alguém que parecia prestes a entoar “adeus ano velho, feliz ano novo” a plenos pulmões.
Ficamos admirando a aparição, meu avô com um pedaço de bacalhau espetado em um garfo e parado em frente à boca, minha avó servindo vinho sem se dar conta de que a taça já transbordava, a família estática, como uma exposição de Madame Toussaut.
A invasora só percebeu que entrara no apartamento errado quando chegou ao meio da sala. Sem perder o rebolado, rodopiou como um Michael Jackson e saiu pela mesma porta que entrara. Uma das tias quebrou o silêncio.
- Gente, era a Rogéria, a travesti?
- Acho que sim – Respondeu a outra.
Sem entendermos o ocorrido, retornamos ao jantar. Os adultos concordavam que, tomando por aquela entrada triunfal, as festas do vizinho deviam fazer jus à fama que possuíam.
Quando já atacávamos a sobremesa e nos preparávamos para assistir à largada da corrida, alguém tocou a campainha. Era novamente a Rogéria, trazendo rosas, que combinavam perfeitamente com seu sorriso meio constrangido, e um prato, coberto por um papel.
- Oi, pessoal, lamento ter entrado sem bater. Me enganei de porta. Pra me desculpar, trouxe essas flores e um pouco de peru. Está ótimo. Um abraço a todos e um feliz ano novo!
- Feliz ano novo! – Respondemos, em um coro descoordenado.
Já saciados, ninguém tocou no peru da Rogéria. Mas as rosas foram ofertadas a Iemanjá, pouco depois.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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