quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

FINAL INFELIZ*


João José de Andrade Ferraz

A notícia da existência do lugar (e seus atrativos) surgiu de uma hora para outra. Como novidade alternativa. Pertinho do Centro, coisa de cinco minutos – de carro; rua apagada e meio escondida, paralela a movimentada avenida da Zona Sul.
Vencido pelo empenho, conheceu misto de bar e restaurante; e se alguém estivesse a fim, também era ponto de contatos para escapadelas sem maiores compromisso. Assim de aprovar, aproveitar, despedir e pagar – tchau e bênça.
Durante a semana, apenas cervejinha ou dose rápidas.
Para variar, nas sextas à noite, durante o sábado e no domingo – até certa altura – acontecia e havia de tudo.
No convívio, a patroa quarentona (segundo dizia e depois foi verificado que era verdade) encheu-se de amor unilateral e platônico pelo novo cliente que, por conta do prestígio, tomava a cerveja mais gelada – em copo separado, que vinha rangendo de tão bem lavado; o gelo era especial, a dose chorada. Dos tira-gostos (mesmo alheios) merecia os melhores pedaços: fossem de galinha – eram o coração, os encontros, o fígado, a moela, o pescoço, o sobrecu...
Detalhe: sempre pagou a consumação.
Sendo ela espécie de mantenedora e orientadora familiar, a parentela interiorana – sem exceção – rendia homenagens (mesmos que falsas) ao protegido. Cada uma matutona feia...
Nada dura para sempre... O local se tornara rapidamente conhecido, e o nível das presenças desceu a profundidade abissal. Os mais vividos notaram logo significativa mudança – para pior.
Exemplo: a atenção diminuiu, a comida piorou, os preços inflacionaram-se absurdamente, as garrafas pariam e as doses se multiplicavam. Por precaução anotava-se fornecimento e as contas nunca batiam; outras, antigas e quitadas, eram descaradamente reapresentadas.
Comentários sobre o mau proceder eram assim:

— Vou deixar de andar aqui; isto já prestou...
— Concordo; eu também vou.
— E eu.
Como o queridinho esteve viajando, ao retornar se viu diante de pendura estratosférico.
— Fulana, venha cá! – crescido nos cascos.
Demorou; e quando resolveu aparecer, veio se desmanchando.
— O que é, meu lindo?
— Lindo coisa nenhuma... Que diabo de conta é esta? Não estava nem por aqui, pô!
— Você só paga se quiser, “bem”; sabe disso...
— Pra você, ó – mostrando – vou pagar esta porcaria sem dever. Pode sair daqui... – enfezado.
Abrindo a capanga, viu que no talão de cheques só restava a requisição; aproveitando o momento, resolveu indispor. Preencheu-a como se fora cheque e a entregou, avisando:
— Taí; tudo zerado. Não me apareça mais com outra conta.
— Certo... – encafuando-se casa a dentro.
Mas era boa em escrita pra enrolar incautos. Dengosa, encostou.
Enche esses depósitos aqui pra mim... – uns bons dois dedos (de altura) de cheques.
               Organizou-os por ordem de valores (inclusive, e de propósito, o “cheque” requisição), relacionando-os no formulário.
Era correntista no mesmo bando onde ela mantinha negócios.
Na segunda, soube do resultado. O gerente, vivo, refez o depósito e mandou autenticar; ao documento juntou talonário do requisitante. Telefonou, avisando:
— Fulana, manda apanhar o depósito. Junto vai um talão de cheques pro... – designando. – Entrega pra ele, faz favor. Ah, parece que tem gente te gozando... – mas não entrou em detalhes.
Ela não entendeu; entregou o talão intacto. Também nunca recebeu o indevido, nem reclamou.
Algum tempo depois, num domingo – intervalo do Fantástico – o triste comunicado.
Havia morrido, num acidente automobilístico horrível, ali depois do balão da Tabuleta; com ela, neto único e um dos sobrinhos – meninos pequenos...

*Do livro Registros de Memória

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