Daniel Cariello**
O que pensa a
velha sentada em sua cadeira de rodas bem em frente à Rua das Laranjeiras?
Quiçá no seu antigo sobrado, verde claro, três andares, 1872, data de
construção gravada no pórtico. Ali viveram seu avô, seu pai e, em seguida, ela,
filha única, com o marido, deputado federal pelo partido de JK, e depois os
três filhos, um deles médico, a outra veterinária e o terceiro jogador do Bangu
nos anos 80. No térreo, a sala estreita e profunda, seguida da grande cozinha e
dos reduzidos quarto e banheiro das duas empregadas. No primeiro andar, os três
dormitórios e apenas uma sala de banho, com toalete. No superior, um grande
cômodo, repleto de estantes e móveis cobertos, clareado apenas pela luz
entrante pelas duas janelas viradas para a rua, seu local preferido na casa,
onde costumava ficar escondida horas a fio, lendo as coleções de livros da avó,
escritas em português do século XIX, daí a explicação de ter redigido dessa
forma até o fim da sua vida. Derrubado em 1971, um ano antes do centenário, deu
lugar a um horroroso edifício de 12 andares, espetado de aparelhos de ar
condicionado, que insistem em pingar na sua cabeça sempre que tem o desprazer
de passar por ali.
Quem sabe se a
anciã condenada à cadeira de rodas não esteja, por acaso, antevendo o futuro? Dentro
de sua quase centenária cabeça, testemunha de muitas e velozes mudanças, talvez
exista uma Rua das Laranjeiras escurecida e silenciosa, tomada por pessoas que
não se veem, a não ser por meio das telas pregadas em frente a seus olhos, não
se esbarram, por terem as rotas traçadas por GPS, não admiram mais o Cristo, a
menos que uma fotografia do Corcovado por acaso apareça no ecrã. Em seu mundo
particular, ela é a única desconectada dessa Matrix carioca, a Old Neo
despreocupada em salvar o mundo, pois ela mesma não tem mais redenção.
É possível que
a senhora acomodada em sua cadeira de rodas, diariamente posicionada sob um
grande pingo-de-ouro, em frente à porta de entrada do prédio onde mora, de
maneira a usufruir ao mesmo tempo de uma boa visão dos acontecimentos da Rua
das Laranjeiras e uma cômoda proteção contra o os raios ultravioletas,
recorde-se da sua longínqua infância, quando a rua era compartilhada por
pedestres, bondes e carroças. Por ela descia ao Largo do Machado e de lá
caminhava até praia do Flamengo, a um quarteirão, onde se banhava aos domingos
com a família e, anos mais tarde, descobria o primeiro beijo, dado por aquele
que se tornaria seu primeiro marido, pai do primeiro filho e depois responsável
pelo primeiro enfarte. E após a praia, comungava infalivelmente com outras
centenas de fiéis, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, erguida no
mesmo ano do seu sobrado.
Nunca teremos
certeza se a vetusta madama, do alto de sua cadeira de rodas, observa a Rua das
Laranjeiras com um olhar desfocado, pois na realidade está apenas esperando o
banho de sol do fim da tarde, o jogo de roleta da televisão, a sopa de legumes
do jantar, o beijo do mocinho da novela, as penas de ganso do travesseiro, os
voos de asas dos sonhos, a volta de vez de Valério.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br
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