sexta-feira, 11 de março de 2016

A VELHA DA RUA DAS LARANJEIRAS*


Daniel Cariello**
O que pensa a velha sentada em sua cadeira de rodas bem em frente à Rua das Laranjeiras? Quiçá no seu antigo sobrado, verde claro, três andares, 1872, data de construção gravada no pórtico. Ali viveram seu avô, seu pai e, em seguida, ela, filha única, com o marido, deputado federal pelo partido de JK, e depois os três filhos, um deles médico, a outra veterinária e o terceiro jogador do Bangu nos anos 80. No térreo, a sala estreita e profunda, seguida da grande cozinha e dos reduzidos quarto e banheiro das duas empregadas. No primeiro andar, os três dormitórios e apenas uma sala de banho, com toalete. No superior, um grande cômodo, repleto de estantes e móveis cobertos, clareado apenas pela luz entrante pelas duas janelas viradas para a rua, seu local preferido na casa, onde costumava ficar escondida horas a fio, lendo as coleções de livros da avó, escritas em português do século XIX, daí a explicação de ter redigido dessa forma até o fim da sua vida. Derrubado em 1971, um ano antes do centenário, deu lugar a um horroroso edifício de 12 andares, espetado de aparelhos de ar condicionado, que insistem em pingar na sua cabeça sempre que tem o desprazer de passar por ali.
Quem sabe se a anciã condenada à cadeira de rodas não esteja, por acaso, antevendo o futuro? Dentro de sua quase centenária cabeça, testemunha de muitas e velozes mudanças, talvez exista uma Rua das Laranjeiras escurecida e silenciosa, tomada por pessoas que não se veem, a não ser por meio das telas pregadas em frente a seus olhos, não se esbarram, por terem as rotas traçadas por GPS, não admiram mais o Cristo, a menos que uma fotografia do Corcovado por acaso apareça no ecrã. Em seu mundo particular, ela é a única desconectada dessa Matrix carioca, a Old Neo despreocupada em salvar o mundo, pois ela mesma não tem mais redenção.
É possível que a senhora acomodada em sua cadeira de rodas, diariamente posicionada sob um grande pingo-de-ouro, em frente à porta de entrada do prédio onde mora, de maneira a usufruir ao mesmo tempo de uma boa visão dos acontecimentos da Rua das Laranjeiras e uma cômoda proteção contra o os raios ultravioletas, recorde-se da sua longínqua infância, quando a rua era compartilhada por pedestres, bondes e carroças. Por ela descia ao Largo do Machado e de lá caminhava até praia do Flamengo, a um quarteirão, onde se banhava aos domingos com a família e, anos mais tarde, descobria o primeiro beijo, dado por aquele que se tornaria seu primeiro marido, pai do primeiro filho e depois responsável pelo primeiro enfarte. E após a praia, comungava infalivelmente com outras centenas de fiéis, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, erguida no mesmo ano do seu sobrado.
Nunca teremos certeza se a vetusta madama, do alto de sua cadeira de rodas, observa a Rua das Laranjeiras com um olhar desfocado, pois na realidade está apenas esperando o banho de sol do fim da tarde, o jogo de roleta da televisão, a sopa de legumes do jantar, o beijo do mocinho da novela, as penas de ganso do travesseiro, os voos de asas dos sonhos, a volta de vez de Valério.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

Nenhum comentário: