terça-feira, 22 de março de 2016

GARÇONETE


Ananda Sampaio*
Tudo que eu queria era ser garçonete. Não, eu não tinha esse sonho quando criança. Passei a delirar com a chegada da idade adulta, comecei a me alimentar de narrativas mirabolantes, substancialmente, diga-se de passagem. E esqueci os sonhos da criança pretensiosa que fui outrora.
Garçonete, patins, bloquinho e caneta. Anotar pedidos, ouvir reclamações e elogios. Uma coisa simples, a minha existência pareceria assim, aos meus olhos, não afetar o mundo. E meus atropelos no horário de pico não produziriam efeitos tão drásticos na humanidade. No máximo, um cliente insatisfeito.
Após o expediente iria para um minúsculo apartamento de dois cômodos. Um gatinho pra dar leite e esquentar a cama. Pronto! Vez ou outra, quando me desse na telha, juntaria meus poucos pertences e partiria para a próxima. Sem aviso prévio. Afinal, encontrar outra garçonete para me substituir não deveria ser difícil.
Assim eu passaria a vida, avançando e recuando. Minimizando os efeitos da minha vida no mundo. Sempre me senti culpada por existir: o lixo que produzo, as pessoas que magoo, a minha inércia política, meu eterno cansaço para receber visitas e fazer sala, minha indisposição para pessoas babacas. As minhas propulsões seriam desfragmentadas a cada partida. Tudo seria dissolvido e antes que alguma catástrofe se instalasse em mim, eu já teria feito a mala e deixado pra trás o meu traço na vida dos outros. A memória é seletiva, se encarregaria de apagar com o passar do tempo a minha presença. Assim é e sempre será.
Quando criança sonhava com tantas coisas, porque desde criança nos dizem que os sonhos podem ser de extensões gigantescas e assim eu fiz. Sonhei que poderia ser invisível, que poderia gravar os meus sonhos, aqueles do sono, para assistir numa fita cassete mais tarde. Que as bonecas se moviam e que os cães eram mais inteligentes que o homem. Só sonhei em ser garçonete quando me tornei uma criança grande e o mundo me atropelou. Descobri que ser garçonete era a melhor maneira de renegar a ele.
Eu leria meus livros preferidos dezenas de vezes e gastaria meu dinheiro na livraria e com hambúrgueres e milk shake. Quando saísse do trabalho não teria que me preocupar com os últimos desenrolamentos do mundo dos homens, seus mercados, suas bolsas de valores e a cotação que a vida adquire todo dia. Não me importaria com o mal estar social, com a falta de empatia, de humanidade ou com a discriminação racial e de gênero. Eu planaria pelo mundo, talvez um fantasma, um observadora, uma sem nome a assistir placidamente o desastre claudicante desse projeto de mundo.
Não há planejamento ou planilha quando se trata de sentimentos. Tudo acontece, fios que se enroscam e formam uma bagunça sem tamanho. Um emaranhado, atropelos e descompassos. Estou sempre tão fora do ritmo que acho que ninguém mais percebe, além de mim mesma.
— Qual o seu pedido, senhor?
— Amor à la carte, por favor.
*Jornalista, estudante de Letras e integrante do @coletivoleitura

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