quinta-feira, 17 de março de 2016

O PENICO E OS PRÉ.


A. J. de O. Monteiro

               Não há muitos registros sobre a minha história ou sobre meus ancestrais. Sei apenas que surgimos na Grécia, segundo informações que colhi. Essa origem no berço da democracia me enche (sem duplo sentido), de orgulho e explica o fato de termos servido com a mesma dedicação às nobrezas de todo o mundo bem como aos mais humildes da terra, sem discriminar cor, raça, gênero, ou posição social. Somos – assim penso – um símbolo inconteste da democracia. Isso me anima escrever esta breve passagem de minha vida.
               Lembro-me com clareza, apesar do tempo decorrido, do dia em que deixei a lojinha no entorno do Mercado Central – onde se situava o comércio popular da cidade, quase que totalmente dominado por imigrantes sírios e libaneses – comprado por um senhor de bons modos, que me levou para sua residência devidamente disfarçado, pois não era de bom tom expor-nos publicamente. Coisas de então. Coube-me, na enorme casa, com grande número de moradores, atender aos dois pré-adolescentes da família e logo na primeira noite de serviço percebi que a tarefa não seria das mais desagradáveis. Os pré – doravante os tratarei assim – eram irreverentes, galhofeiros e desorganizados como só os pré podem ser, mas afáveis; simpáticos, até. Utilizaram os meus préstimos sem abuso e apenas os respingos me incomodavam, talvez pela minha inexperiência no “métier”.
               A rotina era normal. Prestava meus serviços noturnos e, pela manhã, tão logo os pré saiam para a escola era recolhido pelo garoto de serviços da casa e levado ao quintal onde me reunia então com os demais penicos da casa para sermos esvaziados, lavados e postos a secar ao sol – e que sol! Ficávamos na canícula por todo o dia, comentando as atividades noturnas da família, que não julgo razoável tornar público, por questão ética. Ao anoitecer o mesmo garoto de serviços nos pegava no quintal e nos distribuía pelos respectivos aposentos. Ele nunca errava, apesar de sermos todos muito parecidos, revestidos de ágata branca, com bordas e asas azuis, variando, e apenas um pouco, de tamanho. Naquele primeiro contato com a comunidade, reparei que quase todos o penicos apresentavam em seus revestimentos, algumas escaras. Logo fiquei sabendo a razão: O garoto de serviços, talvez para abreviar seu trabalho, tentava levar a maior quantidade de nós por vez (éramos mais de uma dezena) e às vezes nos deixava cair provocando a maior barulheira e, óbvio, a bronca dos donos da casa. Quem já ouviu o barulho de um penico caindo, nunca esquece... É peculiar, inconfundível... Os pré, galhofeiros, como já disse, gritavam uníssono: “abram alas que a banda vai passar”! Todos riam, menos o chefe da família, sério e compenetrado. Coincidência ou não, observei que esses incidentes aconteciam sempre que a família recebia visitas, pelo que aduzi talvez se tratasse de uma pequena vingança do garoto de serviços, tentando constranger a família ante os visitantes.

               A vida seguia tranquila em sua rotina e a noite era de muito trabalho, mas divertida, pois os pré antes de dormir faziam uma resenha do dia contando suas peripécias. Algumas um tanto quanto inverossímeis, diga-se, mas releve-se, afinal eram pré-adolescentes típicos e gostavam de fantasiar um pouco. Eram muito levados e, por isso mesmo, virava e mexia levavam uma boa surra de palmatória. Mas eles não se emendavam; saiam de uma, entravam noutra.
               De uma dessas aventuras, fui testemunha ocular. Certo dia um visitante chegou a casa, vindo do interior para algumas consultas médicas. Era parente da família e vinha, soube, com certa frequência, mas depois de minha chegada, era a primeira vez. Foi-lhe designado o nosso quarto para dormir e logo descobri por que os pre ficaram alegres. O visitante era bonachão, simpático; era de contar pilhérias e “causos” bem ao gosto deles – e meu também. Acontece que o visitante passou a tomar um remédio para os rins, que o fazia mijar verde. Um verde cana, que em contraste com o branco do penico que lhe foi destinado, chamava bastante a atenção e, claro, despertou a curiosidade dos pré que, sem demora perguntaram ao visitante a razão daquilo. Ele explicou de maneira a eles entenderem, mostrando-lhes, inclusive, a caixa do medicamento.
               O visitante, terminadas as consultas, voltou para sua cidade e, na noite daquele mesmo dia, ouvi dos dois, entre gostosas gargalhadas, a traquinagem que aprontaram: Aproveitando-se de um descuido do visitante, retiraram do pote de remédio, duas cápsulas – eram muitas e ele não perceberia. Tomaram-nas, uma cada um, esperaram o anoitecer e, como sempre, na hora da Voz do Brasil, foram para a esquina encontrar com a turma e quando todos estavam reunidos, iluminados pela luz do poste, anunciaram e deram o espetáculo: Ante o olhar estarrecido e admirado dos colegas, mijaram verde! Os outros entraram em êxtase e queriam por que queriam o segredo daquele fenômeno. Os pre negaram-se a contar – claro que não iriam perder a chance de serem os “caras” do pedaço.
               No horário determinado pelos pais todos retornaram para suas casas. Os pre curtindo os prazeres da repentina fama e os demais admirados, encucados e morrendo de inveja...
               Na noite seguinte tomei conhecimento dos desdobramentos da aventura. Nossos heróis esqueceram-se de pedir segredo aos colegas e esses, euforicamente relataram aos pais a proeza mictória dos amigos. Os pais, desconfiados e preocupados, logo no dia seguinte trataram de falar aos pais dos pré, que de pronto mataram a charada e, claro, impuseram aos dois sete dias sem esquina.
                O fato já ia quase esquecido e a vida retomando sua rotina quando entre nós começou a circular um boato de que se instalaria na casa um sistema sanitário mais moderno, com vasos de louças e descargas hidráulicas. Os boatos materializaram-se com a presença dos pedreiros, escavando, instalando tubulações e todos os demais aparatos do sistema. Inseguros temíamos por nossos destinos. Seríamos jogados em um monturo para sermos corroídos pela ferrugem? Quem sabe iríamos para uma funilaria para sermos derretidos e transformados em outros objetos? Não havia nenhuma certeza, só dúvidas e indiferença. Os pré – agora já rapazes – adquiriam novos hábitos, chegando cada dia mais tarde em casa e nem sempre juntos. Pareciam não se importar com meu destino nem dos demais. Temi que a ociosidade me levasse rapidamente à decrepitude. Por sorte e como estávamos em bom estado, a família, com alto espírito de solidariedade resolveu doar a maior parte dos penicos a instituições de caritativas, com exceção de uns dois ou três que ficariam para atender emergências. A mim coube prestar serviços em uma creche da periferia, como peniquinho educativo.
               Terminei bem, né? 

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