Ananda Sampaio*
Nasci
em Teresina, capital do Piauí, geralmente surrupiada da geografia do Brasil.
Talvez porque brasileiro tenha mesmo a memória curta. Para mim, não é à toa que
a cidade tem nome de mulher. E um duplo: Teresa Cristina — junção de dois nomes
da terceira e última imperatriz do Brasil. Sendo a única capital do nordeste
que não tem mar, mas que tem as mais altas temperaturas. Sendo por esse motivo
uma cidade seletiva, quem não gosta de sol não pisa os pés em Teresina.
Em
1987, meu pai passou no concurso do Banco do Brasil e fomos para o interior do
Maranhão, de lá para União e depois para Brasília. O tempo passou e ele dizia peremptoriamente:
— quero voltar para Teresina. Os cabelos começaram a cair, a tez ficou cada
vez menos bronzeada e no topo da cabeça formou-se um mapa, onde os cabelos não
mais cresciam. Eu passava os dedos e o couro não tinha mais poros, estava liso,
infértil. Aprendi que aquele era o mapa da saudade. Sempre ouvi dizer que os
cães definham de saudade, depois disso aprendi que as pessoas também.
Brasília,
cidade cara, para um simples bancário com duas filhas e esposa tudo era
inacessível. Íamos muito pouco ao cinema, quando íamos era um dia para não
esquecermos, assim como se acumulavam as dívidas se acumula a saudade.
Telefonemas sempre após as dez horas da noite, interurbano era mais barato, e a
voz das minhas avós do outro lado. “Por aqui tá tudo bem, minha filha e
vocês?” — sempre que ouvia a voz delas sabia que algo estava mesmo fora de
órbita. Que nós gravitávamos num habitat que não era mesmo nosso. Aí batia a
saudade dos primos, a casa da vovó sempre barulhenta porque estávamos lá e a
comida? Sim, a comida. O creme de galinha, a vitamina de mamão, laranja e
banana e o pudim de leite. Tudo isso estava subscrito no item saudade do meu dicionário.
No
final do ano eles sempre faziam um esforço e mandavam eu e minha irmã de ônibus
para passarmos o natal e ano novo com a família. Dois dias e uma noite de
viagem. Tanta gente feliz ia sacolejando naquele ônibus, a ansiedade estava no
ar, aquela certeza da aproximação quanto mais os pneus comiam asfalto. Tínhamos
saudade do nordeste, porque tem uma coisa que só o nordeste dá — aconchego.
Vínhamos
sempre contando os minutos. Enquanto em Brasília, tão urbanizada e modernizada,
a fala era pronunciada até o último fonema. Nós, do Piauí, engolíamos os
gerúndios, porque, segundo os amigos brasilienses, falávamos cantando. O que
para nós não era nenhuma marca, passou a ser quando nos refugiamos naquele
outro território. Desde então achei bonito dizer que sou de uma terra que as
pessoas falam cantando. Não me abstenho mais do meu sotaque, pensei.
Minha
mãe dizia: calma! Espera mais um pouco antes de voltarmos. E meu pai dizia
repetidamente: quero ir-me embora para Teresina. Não tinha jeito, a vida estava
difícil. Não criamos resistência à saudade como as bactérias criam pelos
antibióticos. A saudade está mais pra traça, que vai roendo e deixando buracos
na alma. E se você olhar por dentro desses buracos enxergará o lugar que
amamos, como um oásis ou a terra prometida contida ali.
Eu
também amava Teresina. Sonhava em voltar, estudar na mesma escola que meus
primos e todas as coisas que se perderam com a quilometragem que tivemos que
percorrer. Brasília foi boa conosco, nos deu bons amigos, boas histórias e nos
ensinou o valor que a nossa terra tinha pra nós. Porque mesmo que áspera, seca,
ela sempre nos reservou um tonel de amor.
*Jornalista,
estudante de Letras, leitora e aspirante (suspirante) escritora. Integrante do@coletivoleituras
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