João José de Andrade Ferraz
Tinha
espécie de fixação em calçados e o gosto passava por todos os tipos, atingindo
modelos clássicos – de cromo ou pelica. Agradando, comprava sem titubear: no
crediário, mas comprava.
—
Quase nem usa; para com isso! Bastam dois: um marrom e um preto. É até pecado...
— bronqueava a mulher.
Não adiantou, claro: a tara permanecia
invicta. Certa feita forma adquiridos dois pares de finos Elbena, sendo que o
preto, no diário, fez calo. Como é que esse porqueira maltrata?, chateava-se.
Com o problema nos pés, pediu a “colega” que lhe amaciasse o par.
—
Aqui estão escova, flanela, graxa, meias novas e sapatos – entregando sacola. –
Capricha no trato, usa e devolve.
Essa
a providência amaciadora.
O
encarregado era ex-PM, excluído da tropa por reiterado comportamento pouco
ortodoxo. Contínuo, no serviço público, amancebado pela enésima vez; morador em
vila, na aprazível e pacífica Timon. Quando tinha grana (uma vez por mês)
emprestava o ar da sua graça em bate-coxas, tomando birita e tal.
Dentro
do prazo marcado para a devolução – tarde da noite, toca o telefone:
—
Alô? Quero falar com o ... – todo apresentado.
—
Quem deseja?
—
É o... É urgente, dona – identificando-se e exigindo.
Aborrecido
atendeu.
—
Hoje ainda não. Só levei umas porradas e tô todo arrebentado; preso no
distrito, nu. Só tenho dois minutos pra falar. A culpa é sua e o jeito é você
chegar até aqui pra me tirar desta porra...
—
O quê? Como é quê?...
Não
houve resposta, pois a ligação fora interrompida. E essa agora? Era só o que
faltava... Mas se vestiu, apanhou o carro e partiu para Timon. Na delegacia,
apresentou-se:
—
Boa noite, sargento. Sou de Teresina, meu nome é... – etc., etc. – Recebi
telefonema do..., que está detido. O que foi?
—
Pois é meu cidadão. A ronda flagrou aquele arruaceiro ali – apontado para o
xadrez – com uns sapatos caos e achou que era furto. Aos costumes, reagiu e
recebeu corretivo. O senhor conhece a peça?
—
Conheço, sim. Trabalha comigo, na... – explicando.
—
Não me diga! O patife, carga torta, funcionário? Ééé, sendo assim... E os
sapatos, o senhor sabe de quem são?
—
Claro, são meus, mandei amaciar. Dá pra liberar?
—
Dá; dá sim, senhor. Um desclassificado desse, protegido... – falando baixo, num
solilóquio. – Sabemos da ficha dele, suja... O senhor fique ciente: é bom que
ele não reapareça, tá certo?
Olhando
para o carcereiro, ordenou:
—
Envelope! Solta aí essa desgraça. Entrega pedaço de sabão e manda banhar na
mangueira; depois devolve as coisas. Tem um bacana aqui, do outro lado,
sentindo as dores...
Em instantes ressurgiu o...; água escorrendo
dos cabelos impermeáveis, calçado, vestido e risonho. Apesar dos visíveis
hematomas.
—
Obrigado, comandante. Até mais ver; adeus.
O
sargento inflou-se de prazer e sorriu, ao registrar o maroto tratamento.
No
fusca, retornando, a minuciosa explicação:
—
Sente só a besteira, cara. Eu tava num rala-bucho bebendo, e fazendo o juízo
duma pistoleira, quando os meganhas encostaram; boatando, fazendo zoada.
Daquele jeito, sabe? O charme do gostoso aqui emputeceu os recos; manjaram os
pisos, quiseram afanar e engrossei. Onde já se viu?! Como era uma patrulha, o
resto você já sabe. Vai pra casa, né? Desço lá e vou dormir na...; curto a surra,
a cara desempena. Tenho muda de roupa no armário.
Quando
atravessávamos a ponte João Luiz Ferreira, lembrou:
—
Ah, Leva esses benditos sapatos. Pobre é de lascar... Nem pode usar coisa boa:
apanha, vai em cana, e ainda é chamado de ladrão...
Estava
– e está – coberto de razão.
*Do livro Registro De Memória
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