sexta-feira, 13 de maio de 2016

USO COMPLICADO*


João José de Andrade Ferraz

               Tinha espécie de fixação em calçados e o gosto passava por todos os tipos, atingindo modelos clássicos – de cromo ou pelica. Agradando, comprava sem titubear: no crediário, mas comprava.
               — Quase nem usa; para com isso! Bastam dois: um marrom e um preto. É até pecado... — bronqueava a mulher.
 Não adiantou, claro: a tara permanecia invicta. Certa feita forma adquiridos dois pares de finos Elbena, sendo que o preto, no diário, fez calo. Como é que esse porqueira maltrata?, chateava-se. Com o problema nos pés, pediu a “colega” que lhe amaciasse o par.
               — Aqui estão escova, flanela, graxa, meias novas e sapatos – entregando sacola. – Capricha no trato, usa e devolve.
               Essa a providência amaciadora.
               O encarregado era ex-PM, excluído da tropa por reiterado comportamento pouco ortodoxo. Contínuo, no serviço público, amancebado pela enésima vez; morador em vila, na aprazível e pacífica Timon. Quando tinha grana (uma vez por mês) emprestava o ar da sua graça em bate-coxas, tomando birita e tal.
               Dentro do prazo marcado para a devolução – tarde da noite, toca o telefone:
               — Alô? Quero falar com o ... – todo apresentado.
               — Quem deseja?
               — É o... É urgente, dona – identificando-se e exigindo.
               Aborrecido atendeu.
               — O que é, rapaz? Isso lá são horas?! Tá embriagado, maconhado, ou o quê? Matou alguém?
               — Hoje ainda não. Só levei umas porradas e tô todo arrebentado; preso no distrito, nu. Só tenho dois minutos pra falar. A culpa é sua e o jeito é você chegar até aqui pra me tirar desta porra...
               — O quê? Como é quê?...
               Não houve resposta, pois a ligação fora interrompida. E essa agora? Era só o que faltava... Mas se vestiu, apanhou o carro e partiu para Timon. Na delegacia, apresentou-se:
               — Boa noite, sargento. Sou de Teresina, meu nome é... – etc., etc. – Recebi telefonema do..., que está detido. O que foi?
               — Pois é meu cidadão. A ronda flagrou aquele arruaceiro ali – apontado para o xadrez – com uns sapatos caos e achou que era furto. Aos costumes, reagiu e recebeu corretivo. O senhor conhece a peça?
               — Conheço, sim. Trabalha comigo, na... – explicando.
               — Não me diga! O patife, carga torta, funcionário? Ééé, sendo assim... E os sapatos, o senhor sabe de quem são?
               — Claro, são meus, mandei amaciar. Dá pra liberar?
               — Dá; dá sim, senhor. Um desclassificado desse, protegido... – falando baixo, num solilóquio. – Sabemos da ficha dele, suja... O senhor fique ciente: é bom que ele não reapareça, tá certo?
               Olhando para o carcereiro, ordenou:
               — Envelope! Solta aí essa desgraça. Entrega pedaço de sabão e manda banhar na mangueira; depois devolve as coisas. Tem um bacana aqui, do outro lado, sentindo as dores...
                Em instantes ressurgiu o...; água escorrendo dos cabelos impermeáveis, calçado, vestido e risonho. Apesar dos visíveis hematomas.
               — Obrigado, comandante. Até mais ver; adeus.
               O sargento inflou-se de prazer e sorriu, ao registrar o maroto tratamento.
               No fusca, retornando, a minuciosa explicação:
               — Sente só a besteira, cara. Eu tava num rala-bucho bebendo, e fazendo o juízo duma pistoleira, quando os meganhas encostaram; boatando, fazendo zoada. Daquele jeito, sabe? O charme do gostoso aqui emputeceu os recos; manjaram os pisos, quiseram afanar e engrossei. Onde já se viu?! Como era uma patrulha, o resto você já sabe. Vai pra casa, né? Desço lá e vou dormir na...; curto a surra, a cara desempena. Tenho muda de roupa no armário.
               Quando atravessávamos a ponte João Luiz Ferreira, lembrou:
               — Ah, Leva esses benditos sapatos. Pobre é de lascar... Nem pode usar coisa boa: apanha, vai em cana, e ainda é chamado de ladrão...
               Estava – e está – coberto de razão.

*Do livro Registro De Memória

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