A. J. de O. Monteiro
Francisco tinha então dezesseis
anos e morava num povoado da zona rural de uma pequena cidade do interior.
Naquela época era conhecido como Chiquinho. Chiquinho levava a vidinha própria
de um adolescente desses rincões afastados e esquecidos do resto do mundo... Aliás,
o mundo, para ele, tinha o tamanho do povoado de onde nunca havia saído. O que
ele conhecia de outros cantos era pelos relatos dos “cometas”² que por ali
passavam em intervalos regulares levando mercadorias e novidades do mundo
exterior.
O lugar se resumia a um
aglomerado de casas, uma pracinha e a pequena capela que era atendida apenas por
padres em desobrigas anunciadas e motivo de grande movimento naquele lugar
também esquecido por Deus. Além disso, só os roçados e pequenas criações de
gado de onde os moradores tiravam suas subsistências. Quando sobrava um pouco
era trocado por mercadorias com os mascates. A energia era fornecida por um
gerador movido a diesel – usina, para eles – que operava diariamente das 17h30min
às 21h30min, desde que a prefeitura do município sede não suspendesse o
fornecimento do combustível – geralmente por questiúnculas políticas – ou por
quebra de alguma peça da máquina. Por vezes ficavam sem energia durante meses,
mas nem ligavam muito, pois o único aparelho elétrico que se via por ali era o
rádio, mas esse também funcionava a bateria e satisfazia às necessidades de
informação e divertimento, apesar do chiado.
Certo dia, um dia crucial na vida
de Chiquinho, havia energia e o ritual do lugar era o de sempre: Os mais velhos
estavam em casa, sentados à porta, proseando e ouvindo pelo rádio, “A Voz do
Brasil” – para eles o melhor programa. Os mais jovens, entre os quais,
Chiquinho, estavam na única e mal tratada pracinha: Uns namorando, outros
conversando e alguns tomando umas biritas para passar o tempo. Nosso amigo não
tinha namorada e não bebia, portanto ficava só observando e aprendendo para
quando sua hora chegasse. As 21h, as luzes dos postes piscaram, era o primeiro
sinal de aviso que a energia seria cortada em 30 minutos. O segundo foi às
21h15min, quando Chiquinho resolveu tomar o rumo de casa.
Já saia da pracinha quando ouviu
uma voz macia: - “Chiquinho, me leva ‘em’ casa”. Tenho medo dos cachorros do
Manoel caçador... Era Maria Cambota e Chiquinho não estava preparado. Virou-se
e disse:
— Olha, Maria, a energia vai
acabar e o caminho é escuro... Minha casa é longe...
— Tá cum medo? Num é homem não?
Isso mexeu com os brios do rapaz,
que reagiu:
— Tenho medo não, vou te acompanhar...
— Então vamos logo, homem.
Seguiram sem conversar. Maria
sorrindo e Chiquinho assoviando, com as mãos nos bolsos para despistar o medo,
não do escuro, mas da própria mulher. Vez por outra ele olhava de banda e o
andar cambaleante – próprio dos cambotas – também o fazia temer que ela, de
repente, caísse sobre ele. Maria era muito grande e Chiquinho franzino.
As 21h30min, quando se
aproximavam da casa do caçador, a energia foi definitivamente cortada. A noite
então ficou fracamente iluminada pelo luar de quarto crescente. Chiquinho
procurou mostrar tranquilidade e continuou caminhando até sentir o peso das
mãos de Maria que o segurou pelos ombros, fazendo-o voltar-se para ela. Encostou-o
contra o poste de iluminação pública, enlaçando-os – ele e poste – com seus
fortes braços. Chiquinho quis escapar, mas não conseguiu. Maria era muito
forte. O pobre coitado não conseguia falar ou respirar com sua cara envolvida
pelos enormes peitos da mulher... Quando já desfalecia, orando para todos os
santos e anjos da guarda de plantão ouviu o latir feroz dos cachorros do
caçador. Maria assustou-se e afrouxou o abraço, no que ele se deixou escorregar
pelo poste e escapar por entre as pernas cambotas da tarada, dando nas canelas
o quanto podia. Correu feito um jamaicano. Não desviava nem das tuias³ deixadas
pelo gado que naquele momento ruminavam a beira da rodagem.
Chiquinho só sentiu alívio quando
viu a luz do lampião aceso à porta de sua casa, onde seus familiares ainda
conversavam no terreiro. Parou quando a mão de seu pai o segurou pelo braço.
— O que foi menino? Parece que
viu assombração?
— Vi pai e era cambota. Me deixa
entrar e tomar um banho...
— Borrou-se?
— Não pai, é que na correria não
consegui desviar das tuias de bosta deixadas pelo gado...
Sem mais, entrou, lavou-se e se
enfiou na rede rogando dormir logo para esquecer o sufoco daquela noite
lancinante que iria apressar seu destino.
No dia seguinte, durante o café
da manhã, anunciou aos pais e demais parentes que iria para a capital tentar a vida
sem, no entanto, mencionar o incidente com Maria Cambota. Saiu com sua mala mal
arrumada, sem olhar pra trás. Naquele momento não queria se lembrar de nada,
nem do lugar onde nasceu, do qual, hoje, nem mesmo o nome lembra. O único
vínculo com o lugar são os pesadelos recorrentes com a cambota...
Francisco, hoje,um cidadão
prioritário, ao contar esta aventura, desabafa: - “Ah Chiquinho, dezesseis anos
e fugir da raia...”.
¹ pessoa de
pernas arqueadas.
² vendedores
ambulantes que passavam regularmente pelas pequenas cidades e povoados – daí o
nome – vendendo mercadorias. Também conhecidos com caixeiros viajantes ou
mascates.
³ fezes de
animais de grande porte (bois, cavalos, jumentos, etc.).
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