Daniel Cariello**
Talvez seja melhor você usar
óculos bifocais, sentencia o oftalmologista, cujas palavras ganham ainda mais
peso por precisarem abrir espaço entre os prateados fios de seu bem fornido
bigode para poderem escapar da boca, um bigode desses merece ser escutado com
atenção, penso eu, de dentro de minha rala barba.
Bifocais, doutor?, bifocais, meu
jovem, levanta o olho pra ver longe, abaixa pra ver perto, serve pra admirar
estrelas e ler livros, você está com a vista cansada, passou dos quarenta,
daqui pra frente só vai piorar, vaticina o dono do vetusto esfregão suspenso
sob as discretas ventas, um oftalmologista que não usa óculos, fato que me faz
voltar sobre minha primeira impressão e coloca uma dúvida sobre sua experiência
no assunto, pois nesse mundo não se pode menosprezar a importância do
empirismo.
Adivinhando o meu pensamento, ele
diz vou te provar novamente, lê ali aquelas letrinhas na parede, F, O, R, A, T,
E, M, E, R, respondo, e agora as miúdas nesse papel, G, O, L, P, I, S, T, pode
parar, a intenção é ótima, mas não é nada disso que está escrito, pra corrigir,
só mesmo com duplo foco, vai fazer ou não vai fazer?
As palavras do médico possuem a
densidade e a imponência do bigode que atravessam, mas nem assim me convencem,
depois de aceitar óculos bifocais, penso, a decadência é rápida e o passo
seguinte será fraldas geriátricas, doutor, vamos fazer só pra ver de longe, tem
certeza?, tenho.
Uma semana depois, o sujeito da
ótica liga, seu Daniel, seus óculos estão prontos, ele diz, pode vir buscar,
vou buscar, experimento, só vejo longe, aqui na frente ficou tudo embaçado, é
isso mesmo?, reclamo, é isso mesmo, o sujeito da ótica responde, pra ver de
longe e de perto tinha que pedir pro oftalmologista receitar bifocal, fuck!,
calo.
O sujeito da ótica levanta os
ombros e os cantos da boca em demonstração tanto de solidariedade quanto de não
posso fazer nada por você, seu Daniel, coloco os novos óculos, tropeço na saída
da loja, não vejo o maldito degrau, tiro os novos óculos e os guardo na caixa,
onde agora descansam a maior parte do tempo, ficam tanto por lá que já nem
sinto mais falta deles.
Isso me leva a crer que, apesar
dos fios brancos do doutor Bigode e de todo o conhecimento da medicina, minha
visão entrou numas de melhorar, rio feliz, enquanto perco novamente o ônibus,
essas placas com os números estão cada vez menores, diabos.
* Publicado Originalmente no Site Quadrado Brasília, em 30/03/2017
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br,
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