quinta-feira, 26 de outubro de 2017

ENQUADRADOS


Ananda Sampaio
                
                     Onde você guarda a melhor parte da sua vida? Tenho me perguntado se a melhor parte da vida das pessoas está mesmo no instagram. Pergunto-me se é na rede social cool que estão memorizadas os melhores momentos da breve existência desses seres pós-rede social virtual. O que temos postado com frequência? A vida que quereríamos ou a vida que não vivemos? Talvez soe hipócrita o arvoramento dessa crítica, mas quero deixar nítido que tal crítica cabe mais a mim. Inquieto-me todos os dias quando sinto um impulso para postar algo sobre a minha vida, meu cotidiano. Especialmente, quando cogito postar uma selfie. Para quê, afinal? Não estaria eu mesma já tão cansada de meu próprio rosto? Não seria por isso que tenho evitado me olhar no espelho e me dado mais oportunidades de me olhar por dentro?
                Papo chato, né? Talvez. Tenho rearranjado meus conceitos sobre felicidade, satisfação, tristeza, honestidade, mentira e delírio. E tenho percebido que está cada vez mais difícil designar uma única tonalidade para cada um deles. Está tudo tão invadido dentro de mim, que uma pitada de tristeza na minha alegria e vice-versa é inevitável. Por isso, cada vez que publico uma foto minha sinto que mais minto do que sou. O avatar da rede social me impede de ser mais tanto aos olhos dos outros quanto aos meus próprios. O que resta para viver offline? Tudo, eu diria tudo.
                E tenho tentado viver tudo que tenho direito fora da tela do meu celular. As declarações de amor, de ódio, de tédio, todas as documentações etéreas da vida. Tudo que é vivido e findo e, por sorte, muita sorte, resguardado no poço frágil da memória. Tenho até escrito pouco, minha alma parece uma flor murcha. Cheia de perfume, mas feia. Sem muitos atrativos estéticos. Sem muito “adocicamento” visual. Estou tentando ser e quem sabe re-abrochar.
                As redes sociais virtuais rechaçam a minha angústia ou meu temperamento descuidado. A minha falta de apelo visual faz de mim orgulhosamente emocional — sem temer a breguice de quem pega fila no caixa de supermercado, de quem amarga um desentendimento com o marido e/ou namorado… A minha vida enquadra uma gama de acontecimentos não-fantásticos. Ou de acontecimentos tão fantásticos e banais como dar banho nos cães no sábado pela manhã. Minha vida carrega o caráter da vida comum que pouco dá manchete. Mas que dá uma boa conversa jogada ao vento.
                Temos um medo tremendo da não-permanência. Documentamos o que comemos, o que bebemos, quem amamos, os livros que lemos, as roupas que compramos, a farra que curtimos, o sol que partiu… Documentamos porque talvez pensemos que não vivemos. Porque, possivelmente, precisamos nos lembrar que estamos vivos e por quais experiências passamos. E para quais pessoas nos demos um dia e não nos damos mais hoje. Documentamos, fotografamos, descrevemos, ostentamos e pouco, muito pouco vivemos. Como disse a sábia Clarice Lispector, o nosso grande problema é o instante. Ainda não aprendemos a lidar com ele. Enquadramos tudo, quão quadrados estamos?

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