Daniel Cariello*
“Tonight I’m gonna have myself a real good time, I
fell ali-i-ive”. Todo o pub seguiu Freddie Mercury em coro, aos primeiros acordes
de Don’t stop me now. Mulheres e homens das mais variadas idades levantavam ao
ar a mão que não estava segurando a pint de cerveja e acompanhavam o Queen a
plenos pulmões. Juntamo-nos, os brasileiros, a eles.
O
Troy 22, uma casa transformada em pub no centro de Londres, tem vários andares.
A pista de dança é no último. Um inferninho perfeito, com bar ao lado, luz
baixa, pouco espaço e música boa. Cheguei ali acompanhando amigos que viviam na
cidade e conheciam os melhores endereços. Esse era “o mais bem guardado segredo
de Londres”, segundo o slogan. Naquele momento, com todos em coro, era
certamente o melhor lugar do mundo.
Foi
um sonho que me levou à cidade. Sonhei com um amigo com quem havia me
desentendido 10 anos antes. Não chegamos a brigar, apenas nos afastamos. Uma
dessas situações que o tempo cura, mas deixa cicatrizes.
Soube
que esse amigo se mudara para Londres. Eu morava em Paris. Uma noite, sonhei
com ele. Na manhã seguinte, enviei uma mensagem. Poucos dias depois, peguei um
trem para a capital inglesa. À tarde, atualizamo-nos do que havia ocorrido na
vida de cada um durante a última década. À noite, estávamos abraçados cantando
Queen.
O
DJ do Troy 22 havia emendado uma sequência absolutamente matadora, com Bowie,
T. Rex e Kinks. Todas cantadas por um ou outro presentes. Mas foi na hora que a
voz de Freddie ocupou o ambiente que aconteceu a catarse coletiva, a comunhão
musical. De repente, tudo fazia sentido e estava em seu lugar: Londres, pub,
pint, rock, Queen, Don’t stop me now, cause I’m having a good time e o coro
ainda maior no “la la la la laaaa” final, com todos retornando aos poucos à
realidade, melhores do que antes.
Naquele
momento de festa, quando cantávamos com os ingleses, meu amigo já sabia que uma
operação de coração o aguardava em algum ponto futuro de sua vida. O
diagnóstico foi dado antes de sua mudança para a Inglaterra. No nosso
reencontro, ele me falou de tudo, só não falou disso. Seguiu sabiamente a
recomendação médica: “vá viver sua vida, não pense em operação por enquanto,
isso é assunto para daqui alguns anos”.
Esses
dias, recebi uma mensagem dele. Um longo texto contando a saga que culminou com
uma operação de aneurisma na aorta, orgulhosamente acompanhado de uma foto de
sua nova cicatriz de um palmo e meio no peito. “Um símbolo forte para quem
nunca desprezou a grandeza da fé e da ciência, separadas apenas pelo que nos
atrasa: o dogma”, escreveu.
Respondi
na hora, exprimindo meu susto de descobrir a história completa de uma só vez e
desejando pronta recuperação, para podermos juntar a turma e comemorar essa
marca no tórax, de preferência com ele fazendo suas danças hilárias que animam
qualquer festa. “Quem não tem cicatriz é porque não viveu”, falei para ele.
E digo mais: meu amigo, espero que
seu peito e sua aorta cicatrizem tão bem quanto aquela ferida que fechamos em
Londres, no Troy 22, com Queen e Don’t stop me now, I don’t want to stop at
all.
*Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br,
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