quarta-feira, 1 de maio de 2019

DON´T STOP ME NOW



Daniel Cariello*
“Tonight I’m gonna have myself a real good time, I fell ali-i-ive”. Todo o pub seguiu Freddie Mercury em coro, aos primeiros acordes de Don’t stop me now. Mulheres e homens das mais variadas idades levantavam ao ar a mão que não estava segurando a pint de cerveja e acompanhavam o Queen a plenos pulmões. Juntamo-nos, os brasileiros, a eles.
O Troy 22, uma casa transformada em pub no centro de Londres, tem vários andares. A pista de dança é no último. Um inferninho perfeito, com bar ao lado, luz baixa, pouco espaço e música boa. Cheguei ali acompanhando amigos que viviam na cidade e conheciam os melhores endereços. Esse era “o mais bem guardado segredo de Londres”, segundo o slogan. Naquele momento, com todos em coro, era certamente o melhor lugar do mundo.
Foi um sonho que me levou à cidade. Sonhei com um amigo com quem havia me desentendido 10 anos antes. Não chegamos a brigar, apenas nos afastamos. Uma dessas situações que o tempo cura, mas deixa cicatrizes.
Soube que esse amigo se mudara para Londres. Eu morava em Paris. Uma noite, sonhei com ele. Na manhã seguinte, enviei uma mensagem. Poucos dias depois, peguei um trem para a capital inglesa. À tarde, atualizamo-nos do que havia ocorrido na vida de cada um durante a última década. À noite, estávamos abraçados cantando Queen.
O DJ do Troy 22 havia emendado uma sequência absolutamente matadora, com Bowie, T. Rex e Kinks. Todas cantadas por um ou outro presentes. Mas foi na hora que a voz de Freddie ocupou o ambiente que aconteceu a catarse coletiva, a comunhão musical. De repente, tudo fazia sentido e estava em seu lugar: Londres, pub, pint, rock, Queen, Don’t stop me now, cause I’m having a good time e o coro ainda maior no “la la la la laaaa” final, com todos retornando aos poucos à realidade, melhores do que antes.
Naquele momento de festa, quando cantávamos com os ingleses, meu amigo já sabia que uma operação de coração o aguardava em algum ponto futuro de sua vida. O diagnóstico foi dado antes de sua mudança para a Inglaterra. No nosso reencontro, ele me falou de tudo, só não falou disso. Seguiu sabiamente a recomendação médica: “vá viver sua vida, não pense em operação por enquanto, isso é assunto para daqui alguns anos”.
Esses dias, recebi uma mensagem dele. Um longo texto contando a saga que culminou com uma operação de aneurisma na aorta, orgulhosamente acompanhado de uma foto de sua nova cicatriz de um palmo e meio no peito. “Um símbolo forte para quem nunca desprezou a grandeza da fé e da ciência, separadas apenas pelo que nos atrasa: o dogma”, escreveu.
Respondi na hora, exprimindo meu susto de descobrir a história completa de uma só vez e desejando pronta recuperação, para podermos juntar a turma e comemorar essa marca no tórax, de preferência com ele fazendo suas danças hilárias que animam qualquer festa. “Quem não tem cicatriz é porque não viveu”, falei para ele.
            E digo mais: meu amigo, espero que seu peito e sua aorta cicatrizem tão bem quanto aquela ferida que fechamos em Londres, no Troy 22, com Queen e Don’t stop me now, I don’t want to stop at all.


*Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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