A. J. de O. Monteiro
A
quitanda do “seu” Pio era mais boteco que quitanda pois o seu estoque era
composto basicamente por cachaça e cigarros. Além disso apenas arroz, feijão,
farinha e alguns tipos de condimentos da culinária trivial da região. Só para
se ter uma ideia, dois terços das prateleiras eram ocupados por garrafas de
cachaça, a maioria sem rótulos, portanto de qualidade e origem duvidosas.
A
bodega – vamos chama-la assim mesmo – situava-se estrategicamente no cruzamento
de uma rua que demandava ao mercado central da cidade e outra que conduzia ao
improvisado cais de amarração das balsas que traziam do sul do estado, gêneros
alimentícios para abastecer o próprio mercado e o pequeno comércio varejista
local, principalmente da periferia. As balsas – embarcações rudimentares – construídas
com talos de buritizeiros deixavam vazar para o rio, uma boa parte da
mercadoria que transportava (feijão, arroz, milho). Traziam também aves e
animais de pequeno porte (galinhas, perus, patos, suínos, ovinos e caprinos). As
fezes desses animais também vazavam para o leito do rio e, juntamente com os
grãos, atraiam muitas espécies peixes e, por conseguinte, pescadores. Para o
mercado também convergiam pequenos produtores da zona rural da cidade que
traziam pra vender na feira livre que se formava ao redor do mercado suas
hortaliças, legumes e frutas que vinham até ali transportadas em lombo de
jumentos e burros. Daí se formava a eclética clientela da bodega do “Seu” Pio:
balseiros, pescadores, barraqueiros, roceiros, atravessadores e os pequenos
comerciantes do mercado e adjacências.
Durante
toda a manhã e boa parte da tarde, esses personagens, entre um negócio e outro,
uma venda e outra, uma compra e outra, dava uma chegada na bodega para uma talagada, ou duas, ou mais e, dependendo
do curso dos negócios, uma boa prosa com o proprietário e outros
frequentadores.
Desde
que se estabeleceu no local, “Seu” Pio, arguto, observou que os clientes, para
justificar o vício, atribuíam à cachaça, qualidades medicinais do tipo: “Ó
‘seu’ Pio, tô com uma dor de cabeça
de rachar, me sirva uma dose da danada pra
aliviar...” Um outro já alegava moleza no corpo ao pedir sua dose do
“remédio”. E assim por diante. Cada um com um problema diferente, mas a
prescrição era a mesma: CACHAÇA! Dor de barriga, dor nas juntas, falta de
apetite e, pasmem, até para pressão alta o remédio era o mesmo: CACHAÇA! E
“Seu” Pio, previdente, ia anotando tudo em um volumoso caderno: cachaça é bom pra isso; cachaça é bom pra aquilo e pra aquilo outro. O caderno já estava preenchido com os
“benefícios” medicinais da cachaça, para além da metade.
Certo
dia, no final da tarde, já com o movimento da feira encerrado, “Seu” Pio, como
fazia diariamente, foi contabilizar o apurado contando o dinheiro vivo e as vendas no fiado anotadas em
outro também volumoso caderno. Para isso precisava do auxílio dos óculos, mas,
cadê os óculos? Procura aqui, procura ali, procura acolá e nada de óculos.
Chama o auxílio da esposa – famosa por ser achadeira,
até do que não deve ser achado – e nada de óculos. Revirou gavetas, procurou
nos quartos da casa que era contígua ao boteco e necas. Foi ao quintal,
procurou no galinheiro e também não achou os benditos óculos. Angustiado e
agitado pela procura, começou a sentir uma incômoda dor de cabeça. Foi até o caderno
de prescrições medicinais da cachaça e lá encontrou: “cachaça é bom pra dor de cabeça”. Encheu o copo com
aquela que considerava a menos agressiva e tomou o “remédio” virando a cabeça
para trás. Quando abriu os olhos, ainda
com a cabeça virada, viu seus preciosos óculos na terceira prateleira, entre
dois litros da “bendita”. Correu ao caderno de prescrições e anotou: CACHAÇA É
BOM PARA ACHAR ÓCULOS!
*Adaptação de antiga anedota contada por meu
pai, que não era lá muito bom nessa arte.
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