quarta-feira, 7 de agosto de 2019

FÍGARO



Daniel Cariello*

            Aos 5 anos, vi minha primeira ópera, na tv em preto e branco que ficava no canto da sala dos meus avós maternos. Era Romeu e Julieta, do francês Charles Gounod. Detestei. Os atores falavam tudo cantando e em outra língua. E o final da história, que eu já conhecia, não chegava nunca.
— Eles já vão morrer?
— Pssst! Escuta a música.
— Mas que horas o Romeu vai tomar veneno?
— Daqui a pouco, Daniel, daqui a pouco.
            O daqui a pouco demorou uma eternidade e nem achei tão legal. Para mim, era apenas um filme muito sem graça. Sessão da Tarde era mil vezes mais divertida e ainda tinha intervalos na duração perfeita para um ataque à geladeira. Mas meu avô Guynemer estava extasiado. Comentava que a música era bonita, os cantores eram ótimos, o cenário era perfeito e outras coisas das quais eu discordava em silêncio.
            Nesse dia, entendi que meu avô e ópera eram indissociáveis. Era comum chegarmos para uma visita e sermos recebidos por ele cantando “la donna è mobile / qual piuma al vento”, assobiando La Traviatta ou exagerando em “fígaro fígaro fííígaro”.
            Essa paixão vinha de longe. No Rio de Janeiro dos anos 1930, Guynemer era assíduo frequentador do Theatro Municipal. Nele, não apenas assistiu às grandes óperas de passagem pela cidade, como também participou de algumas, fazendo figuração. Queria ser galã secundário, porém era pequeno e franzino, então só lhe davam papéis de bandido ou forasteiro. Uma vez, ganhou um destaque: iria morrer, como quase sempre acontecia. Mas dessa vez em uma luta, esfaqueado, no centro do palco, e para desespero do restante do elenco, valorizando a queda.
— Cai, Guynemer!
            A situação só se resolveu com a intervenção de um legionário romano, que sussurrou em seu ouvido e se serviu de uma facada não prevista no script original para dar cabo daquele que se recusava morrer. Não foi moleza. Mas também o legionário não podia imaginar que estava lidando com a única pessoa que derrotou em uma luta a terrível Madame Satã, travesti e malandra temida na Lapa, segundo as narrativas da família.
            Tive a sorte de crescer ouvindo essas e outras aventuras do meu avô. Acompanhadas da trilha sonora, foram aos poucos mudando minha percepção sobre ópera e música clássica em geral, em um caminho que me levou esses dias ao Theatro Municipal que ele frequentou, para ver pela primeira vez uma ópera ao vivo: Fausto, do mesmo Charles Gounod de Romeu e Julieta, a obra onde essa história começou para mim, há 40 anos.
            Adorei. A música era bonita, os cantores eram ótimos, o cenário era perfeito. Tudo funcionando, em uma grandiosa montagem. Faltou só o meu avô Guynemer. Ele ia se divertir com aquele figurante que não queria sair do palco de jeito nenhum, no 4º ato.
*Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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