Daniel Cariello*
Uma amiga francesa me contou uma história espantosa: um
colega dela, também francês, processou um galo. Isso mesmo, ele foi à justiça
contra um galo recém chegado à casa vizinha à sua, em um vilarejo campestre
próximo a Bordeaux. A pobre ave não havia aprontado nada demais. Não invadiu o
quintal do sujeito, não rapou suas reservas de milho, não bagunçou sua casa,
nada disso. Estava apenas fazendo o que se espera de um galo: cantando.
Acontece que esse colega irritou-se com o cocoricó matinal do inocente
penado e, de posse de sua cidadania gaulesa, lançou mão de uma das expressões
definidoras dos franceses: “j’ai le droit”, eu tenho o direito. “J’ai le droit
de dormir”, gritou, exigindo o respeito ao seu divino direito ao sono. Ele tem
toda a razão, vale dizer, mas o galo jamais poderia desconfiar.
“J’ai le droit de dormir, bordel de
merde!”, insistiu, sem que o galináceo interrompesse sua diária missão de
autorizar o nascer do sol, como autorizaram todos os seus antepassados e farão
seus descendentes. Sem nenhum resultado prático e ciente de seus direitos e dos
supostos deveres do bicho, o sujeito dirigiu-se ao juiz mais próximo e abriu um
processo. Não contra o dono do galo, mas contra o próprio animal.
Quando essa história me foi contada,
seu desfecho ainda não tinha sido definido. Não sei se a ave foi julgada
culpada ou inocente. E ignoro mais ainda as possíveis penas (com trocadilho,
por favor) aplicadas. Mas o galo ter ido parar no poleiro dos réus é, sem
dúvida, um fato fascinante. E diz muito sobre os franceses, esse povo que após
a revolução de 1789 decidiu que ter direitos era, sim, um direito universal.
Nesse momento dos mais esquisitos,
eis que temos por aqui um galo que cacareja alto e forte nos nossos ouvidos
todos os dias, e ainda invade nosso quintal, rapa nossas reservas e bagunça
nossa casa. Rodeado de outros plumados, o animal faz tanto barulho e promove
tamanha desorganização que não conseguimos nem resistir ao seu ataque.
Pois já está passando da hora de
agirmos como os franceses e nos juntarmos para gritar um “j’ai le droit de ne
pas accepter tout cela”, que soa até melhor em português: “tenho o direito de
não aceitar tudo isso”.
A outra opção é continuarmos a
proceder à moda brasileira, deixando cozinhar o galo e não fazendo nada para
mudar o que vem acontecendo. Mas aí talvez em breve até as panelas nos tenham
sido tiradas. E porque aceitamos tudo, não poderemos nem mais ter pena (sem
trocadilho) de nós mesmos.
*Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br,

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