sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O GALO



Daniel Cariello*

            Uma amiga francesa me contou uma história espantosa: um colega dela, também francês, processou um galo. Isso mesmo, ele foi à justiça contra um galo recém chegado à casa vizinha à sua, em um vilarejo campestre próximo a Bordeaux. A pobre ave não havia aprontado nada demais. Não invadiu o quintal do sujeito, não rapou suas reservas de milho, não bagunçou sua casa, nada disso. Estava apenas fazendo o que se espera de um galo: cantando.
            Acontece que esse colega irritou-se com o cocoricó matinal do inocente penado e, de posse de sua cidadania gaulesa, lançou mão de uma das expressões definidoras dos franceses: “j’ai le droit”, eu tenho o direito. “J’ai le droit de dormir”, gritou, exigindo o respeito ao seu divino direito ao sono. Ele tem toda a razão, vale dizer, mas o galo jamais poderia desconfiar.
            “J’ai le droit de dormir, bordel de merde!”, insistiu, sem que o galináceo interrompesse sua diária missão de autorizar o nascer do sol, como autorizaram todos os seus antepassados e farão seus descendentes. Sem nenhum resultado prático e ciente de seus direitos e dos supostos deveres do bicho, o sujeito dirigiu-se ao juiz mais próximo e abriu um processo. Não contra o dono do galo, mas contra o próprio animal.
            Quando essa história me foi contada, seu desfecho ainda não tinha sido definido. Não sei se a ave foi julgada culpada ou inocente. E ignoro mais ainda as possíveis penas (com trocadilho, por favor) aplicadas. Mas o galo ter ido parar no poleiro dos réus é, sem dúvida, um fato fascinante. E diz muito sobre os franceses, esse povo que após a revolução de 1789 decidiu que ter direitos era, sim, um direito universal.
            Nesse momento dos mais esquisitos, eis que temos por aqui um galo que cacareja alto e forte nos nossos ouvidos todos os dias, e ainda invade nosso quintal, rapa nossas reservas e bagunça nossa casa. Rodeado de outros plumados, o animal faz tanto barulho e promove tamanha desorganização que não conseguimos nem resistir ao seu ataque.
            Pois já está passando da hora de agirmos como os franceses e nos juntarmos para gritar um “j’ai le droit de ne pas accepter tout cela”, que soa até melhor em português: “tenho o direito de não aceitar tudo isso”.
            A outra opção é continuarmos a proceder à moda brasileira, deixando cozinhar o galo e não fazendo nada para mudar o que vem acontecendo. Mas aí talvez em breve até as panelas nos tenham sido tiradas. E porque aceitamos tudo, não poderemos nem mais ter pena (sem trocadilho) de nós mesmos.
*Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br


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