sexta-feira, 20 de setembro de 2019

LOUISE E O BODE


Daniel Cariello*

                Louise começou a fazer aula de música na escola e revelou surpreendente gosto e talento para a coisa. De um dia para o outro, a casa foi preenchida pelo som da flauta doce e suas notas em princípio um pouco hesitantes e finalmente seguras e firmes. Logo, não havia mais hora para ela praticar o instrumento, o mesmo que aprendi quando tinha a sua idade, 9 anos.
— Fu, fu, fuuu, fu, fu, fuuu, fu…
— O que é isso, minha filha?
— Ué, pai, Barcarolle, já toquei muitas vezes, não lembra?
— Eu sei, eu sei, mas são 6 da manhã. Não está um pouco cedo?
— Ando sem tempo, preciso praticar agora.
— Ah…
                Apesar de seus dias lotados, Louise foi obrigada a restringir os ensaios a horários mais adequados, para o bem do sono de toda a vizinhança. Com tanta dedicação, o repertório ensinado nas aulas logo não era mais suficiente, e ela foi atrás de outras músicas. A primeira foi Yellow Submarine. Fiquei tão empolgado que cantei junto.
— In the tooown where I was booorn…
— Pai.
— ...lived a maaan who sailed to seeea.
— Pai!
— O quê?
— Pode parar? Tá atrapalhando.
                Contrariado, fiz bico e fui pro meu canto. Mas a melodia dos Beatles continuava a invadir a casa e me levou de volta para meus dias imberbes, trazendo-me à memória o Bode, flautista que morava em uma casa vizinha à minha e passava os dias soprando pelos vastos gramados de Brasília os maiores sucessos da época.
                Eu escutava aquilo com atenção e depois tentava reproduzir em casa as melodias, mas sem o mesmo sucesso do Bode, profissional na matéria. À custa de muito esforço e da paciência da família e dos vizinhos (tmj, Louise!), consegui decifrar algumas. Meu auge foi quando fiz na flauta a introdução de saxofone de Your Latest Trick, do Dire Straits, que cheguei a ensaiar em duo, com meu amigo André acompanhando no violão.
                Minha carreira de flautista foi entretanto efêmera e a decadência veio imediatamente após o curto apogeu, pois abandonei a flauta nesse mesmo dia, quando o André me ensinou os primeiros acordes no violão. A única música que ainda consigo tirar do antigo instrumento é A Barquinha, a primeira que aprendi, também na escola.
                Meus devaneios misturaram-se à realidade quando a Louise começou a tocar exatamente as primeiras notas de A Barquinha, que havia aprendido naquele mesmo dia. A execução foi quase perfeita, só errou a nota final. Pedi para ela me emprestar a flauta e reproduzi a melodia inteira. Louise observou e me tomou o instrumento das mãos, impaciente para corrigir a própria performance. A medida que ela ia avançando, eu fazia as notas com a boca, tentando orientá-la. Ela parou de soprar e olhou para mim.
— Pai!
— O quê?
— Posso te falar uma coisa?
— Claro! - Já imaginava que fosse me agradecer por ter ensinado o detalhe que faltava.
— Para de cantar junto. Tá atrapalhando!
                Voltei pro meu canto, no maior bode.
* Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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