Daniel Cariello**
Na barca para Paquetá, o vendedor grita pelos corredores
que um é dois e três é cinco, convidando o passageiro a aproveitar dos
crocantes amendoins a preços que subvertem a lógica matemática. Uma família
cede à oferta e repassa um saquinho da guloseima a cada uma das crianças,
forçadas a desgrudar o olhar da tela onde assistem a um filme.
Uma mulher segue aflita pelos corredores: “alguém viu o
Batman?”. “Oi?”. “Meu filho, fantasiado de Batman, não sei onde está, vocês
viram?”. Ninguém viu.
No pequeno convés, alguns viajantes fotografam a Baía de
Guanabara e aguardam com ansiedade a passagem sob a ponte Rio-Niterói, ainda
mais impressionante vista de baixo. Outros estão entretidos trocando acenos e
saudações com a dupla de pescadores indômitos metida em um diminuto bote a
remo, que quase atravessou nosso caminho.
Alheios ao que ocorre fora do barco, dois amigos discutem
sobre Os Caçadores da Arca Perdida. Enquanto um elogia a produção, o outro
detona o universo de Indiana Jones: “É horrível. Só tem cabeças explodindo e
corpos derretendo. E a mulher, o que ela faz? Troca de roupa o tempo todo, nada
mais. Uma droga. Pra mim, cinema é Deus e o Diabo na Terra do Sol”. O colega
tenta argumentar que gostar de Glauber não o impede de apreciar Spielberg, mas
não tem tempo de desenvolver, pois o papo é interrompido por mais um vendedor,
oferecendo água, recusada. Biscoito, recusado. Cerveja, recusada. Sacolé,
recusado. Bala de menta, aceita, mas devolvida, o comerciante não trocava
cinquenta.
Um homem segue aflito pelos corredores: “você não viu por
acaso um menino fantasiado de…”. “Batman? Não!”, completa uma senhora de
vestido e chapéu de onça, antes dele ter tempo de terminar a frase.
Retorno ao meu assento e acompanho o debate político do
grupo sentado à minha frente. O de boné lamenta particularmente a situação do
Rio de Janeiro: “mermão, tá tudo arrombado por aqui”. A moça concorda: “tudo
arrombado”. E o terceiro, grisalho, corrobora, ainda mais pessimista: “tudo
arrombadaço, tá sinistro, maluco”. Todos assentem com a cabeça.
Vestido de Luiz Gonzaga, um sanfoneiro abre caminho no
meio das pessoas tocando A Vida do Viajante (“minha vida é andar por esse país,
pra ver se um dia descanso feliz”), para alegria minha e de outros presentes.
Tento fazer a voz do Gonzaguinha, mas o cantor desce a escada e leva com ele a
música rumo ao primeiro piso da embarcação, justo na hora em que eu me
preparava para brilhar acompanhando no “heiê, haiê, haiê, hê, hê, haiê”.
A barca chega a Paquetá, que está em festa, como sempre
me parece estar cada vez que visito essa pequena ilha sem carros e cercada de
natureza. O pai do pequeno Batman desce na frente, puxando a fila e a orelha
esquerda do mini super herói finalmente encontrado, pois a direita já está
ocupada pela bronca da mãe. Os demais saem depois, vendedores ambulantes,
fotógrafos amadores, famílias passeadoras, críticos de cinema, analistas
políticos, músicos diletantes, todos esses personagens que colorem a travessia
da Baía de Guanabara.
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*Lembrando
que minhas crônicas agora também são publicadas pelo Diário do Rio, um jornal
online sobre o Rio de Janeiro, cuja visita só poderia recomendar.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br,

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