Em
1966, andava à toa na vida e não tinha amor que me chamasse pra ver a banda
passar ou para ir a praça... Na minha cidade a banda se apresentava em coretos
de praças, no início das noites de domingos e dias festivos. Pois é; a banda não ia aonde o povo estava (invocando
Milton). Também não viram a banda passar a moça feia que vivia escondida por
medo de sair à rua e servir de chacota. Tampouco o velho fraco viu a banda pois
morava longe da praça e o cansaço não o encorajava sair e a banda, como já se
sabe, não desfilava pelas ruas. O homem que contava dinheiro, da mesma forma,
também não viu por que não queria parar para ouvir ou ver a banda. Para ele, usurário
que era, música é o tilintar das moedas e o farfalhar das cédulas...
E
assim seguia eu, à toa e embalado por tua inspiração, buscando uma Carolina que
com olhos tristes, ou não, percebesse meu penar e olhasse pra mim... Ou uma
Januária que da janela me visse passar. Mas, meu caro Chico, todas as Carolinas
da minha cidade tinham olhos vivos e enxergavam além e por sobre mim e as
Januárias fechavam as janelas ao me verem passar e o romantismo acabou... Daí resolvi tornar-me um guri de pernas compridas
e muita malícia a embalar os sonhos de minha mãe que embalava os meus. Mas nem
as pernas compridas nem toda a malícia que Deus me deu, bastaram para fugir da
polícia e minha mãe, que ao me ver de papo pro ar, achou que eu estava lindo e
sorrindo e declarou a todos que queriam ouvir: Saibam seus moços, ele um dia me
disse que chegava lá! Na verdade, seus moços, ninguém chegou lá!
Mas
quero falar de gente, da gente sofrida, que falava de lado olhando pro chão,
enquanto a tristeza não era desinventada
nesta pátria mãe tão distraída, submetida a uma roda viva sem complacência, sem
perdão ou retorno. Moendo Jucas, Genis, Pedros Migueis, Terezinhas e Marias que
teimaram em não acordar calados, nem mesmo quando os homens já estavam no vão
de escada... Nem mesmo quando quem mandava, falava e impedia o alvorecer
cortando a garganta do galo, eles calaram. Juntaram suas vozes aos gritos dos que
bebiam da bebida amarga servida em cálice de chumbo e fogo nos soturnos porões
daquela longa noite. E tanto gritaram que o galo voltou a cantar, água nova
brotou e o céu clareou, impunemente etc e tal...
E
o amor Chico? Tratas do amor à revelia de Monsueto e Arnaldo Passos rimando-o
com dor... A dor do Juca que foi autuado em flagrante enquanto cantava para a
Maria de seus sonhos. Mas desafiou o delegado batucando assim na mesa: O delegado é bamba na delegacia, mas nunca
fez samba, nunca viu Maria... E tantos mais amores cantaste e em tão
diversas formas e modos e gêneros... Mas os teus personagens embora sofridos,
não clamavam por vingança como aquele de Lupicínio. Teus personagens embora
vítimas das trapaças dos amores seguiam em frente, resignados, mesmo quando uma
Rita insensível lhes roubava sonhos, juventude e emudecia o violão. Saiam sem
fazer alarde – embora batendo o portão e lamentando a perda do Neruda. Não
sabemos, posto que não esclareces, se ao menos ela lhe concedeu a saideira. E a
Gení, Chico? Ah, a generosa Gení que embora preferisse amar os bichos,
apiedou-se de seus algozes e resolveu atender seus rogos entregando-se ao
impiedoso comandante do zepelim evitando que a iníqua sociedade que a
desprezava fosse varrida do mapa pelas descargas de dois mil canhões. Ah, meu
caro, usa do teu poder e traz de volta o zepelim e mostra ao seu comandante que
aquela que o encantou e saciou seus desejos, voltou a ser torturada de maneira mais
cruel ainda pela turba ensandecida. O prefeito, que de joelhos lhe rogava
intercedesse por sua vida, retomou a arrogância dos alcaides, desprezando-a; o
banqueiro tomou de volta seu um milhão cobrando-lhe juros e correção monetária;
o bispo de olhos vermelhos estancou o choro desesperado e lhe negou as
indulgências prometidas
No
entanto nem só de dores e horrores trataste. Cantaste o amor de entrega e
submissão como daquela que espera o amante voltar dos bares onde batucava um
sambinha com um novo amigo qualquer olhando as saias coloridas pelo sol que
voltavam das praias e, mesmo assim, prepara o seu doce predileto com carinho e
com afeto e, submissa, ainda lhe abre os braços. E o amor outonal tão bem descrito
numa Valsinha que reacende o romantismo quase esquecido de dois velhos amantes,
levando-os darem-se os braços, irem a praça namorar, e se beijar, e dançar como
há muito tempo não queriam ousar, sem dar importância aos bochichos de toda
vizinhança. Se me dispusesse rememorar todos os poemas de amor que produziste, tornaria
esta carta homenagem num tratado de louvor a Hathar, Isis, Afrodite, Eros, Anteros,
e Vênus, pois, a todos eles louvaste. E pra falar de amor é preciso entender de
amor e pra entender de amor é preciso amar... (invocando Caymmi).
Meu
caro Chico, espero que me perdoes a enorme ousadia de buscar em teus versos esteio
para escrever esta carta chinfrim que muito longe fica da
qualidade de tua obra. Mas, creia, quero apenas te dizer de toda a gratidão por
representares os sonhos, as frustrações, a revolta e a indignação e, por que
não dizer, o lirismo de toda nossa gente humilde, sofrida que abre a marmita e se
farta com seu cotidiano banquete de feijão com arroz, agradecida a Deus pelo repasto,
pelo chão pra dormir, pela cachaça de graça, pelos andaimes pingentes e pela
paz derradeira que enfim vai nos redimir(?).
Mas
o que quero te dizer é que aqui na terra a coisa tá voltando a ficar preta. O samba
está aviltado pelo som livre que nos
é enfiado oiças abaixo e o único Choro
que se ouve é o choro dos desesperados, dos errantes, dos retirantes, de toda
gente sem porvir... O futebol disse adeus aos nossos campos e se dispersou pela
Europa, pelas Ásias. Algures e alhures... Perdeu o balanço, e, rock, só in Rio.
Um
grande abraço.
A. J. de O. Monteiro
NOTA
As canções, cujos versos são usados
para compor a “carta”, não obedecem qualquer ordem, tampouco os versos são
usados nas suas formas originais.

Um comentário:
Muito bom Monteiro, texto digno de músicas do imortal Chico Buarque de Holanda!!!!
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