Daniel Cariello*
A
lua, por exemplo, não mudou, é claro. Mudou foi minha maneira de olhar para
ela. Agora a observo todas as noites, acompanhando quase em tempo real cada uma
de suas fases, filosofando sobre a gravidade de nossa proximidade cósmica.
Esses dias a professora de yoga deu uma aula especial porque era lua cheia em
escorpião. Não faço ideia do que isso significa e imagino que ficaria
igualmente satisfeito se a yoga fosse na lua minguante em touro, ou crescente
em leão. Preciso espiá-la um pouco mais, para descobrir se faz alguma
diferença.
Mudei
os móveis do escritório de lugar e remontei meu estúdio de música, há anos
desativado. Quem sabe agora não escrevo de uma vez aquela canção com a qual
sonho desde que conheci os Beatles, aos 6 anos, e vai certamente mudar o mundo.
Mas se essa canção for mesmo gravada e apenas me mudar um pouquinho, já será de
bom tamanho.
O
repertório musical da casa também está diferente, com a recente incorporação
das canções do Now United, um grupo de cantores/dançarinos do qual você nunca
ouviu falar se não é pai ou mãe de pré-adolescente. E se é, certamente não ouve
falar de outra coisa. Como Louise escuta o dia inteiro, conheço todas as
músicas. Meu próximo passo, prometi a ela, vai ser aprender as coreografias.
Vou encarar o desafio assim que ela tocar direitinho Asa Branca na flauta doce.
Meu
cabelo continua despenteado, o que não representa nenhuma mudança, mas agora
não ligo. E não me preocupo mais em fazer a barba. Quanto ao vestuário, já
passei dias inteiros de pijama e há mais de um mês não calço outra coisa além
de Havaianas. Azuis para dentro de casa, brancas para fora. Camisa de botão
apenas para reuniões online. Sempre a mesma. Quando sujar ou alguém comentar, o
que vier primeiro, troco por outra. Bermuda só lavo quando começar a endurecer,
o que ainda não aconteceu.
As
plantas do terraço ficaram mais belas desde que Charlotte se converteu à
jardinagem. Quando não está aguando e adubando, dedica-se com afinco à caça às
lagartas que atacam o pé de maracujá. Os bouganvilles agradecem a atenção e
retribuem com flores como nunca deram antes. E outro dia temperamos a salada
com a ciboulette que ela plantou.
Os
zooms, directs e lives viraram parte da rotina e a única maneira segura de estar
em contato com família, amigos e artistas. Tem vez que dá vontade de abraçar a
tela. Mas nas festas online, se fecharmos bem os olhos e bebermos um pouco (ou
muito), dá quase para ter a sensação de estar perto de outras pessoas. Quase.
Também
tenho lido mais. Os últimos foram O Andarilho das Estrelas, de Jack London, no
qual um prisioneiro de uma solitária viaja para suas existências passadas. E O
Alienista, de Machado de Assis, sobre um médico que constrói um sanatório para
abrigar os loucos da região. Fico pensando em quem eu colocaria ali. Ou, mais
fácil nesse momento, em quem eu não colocaria. Gosto de ler no terraço, à
noite. De vez em quando paro, olho para o céu e observo a lua. Em que
quadratura ela estará agora?
--
Quinto texto da série "Crônicas
isoladas", que continuará durante a quarentena.
* Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br,
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