domingo, 17 de maio de 2020

O COMETA E A FIMOSE DO HALLEY



A. J. de O. Monteiro

                No início do ano de 1986, era grande a expectativa com a nova passagem do cometa Halley pelo Sistema Solar – a última ocorrera em 1910. Naquele ano a terra atravessou a cauda do corpo celeste que, segundo descobertas recentes (àquele ano), continha cianogênio, gás bastante tóxico, o que gerou pânico entre a população e foi motivo mais que suficiente para os charlatães, sempre atentos, tirarem proveito e colocar no mercado produtos destinados a proteger as pessoas dos efeitos nocivos do gás. Os pilantras ofereciam remédios (cloroquina?) e produtos protetores tais como guarda-chuvas anti cometa e máscaras contra gases, obtendo grandes lucros, apesar dos alertas dos astrônomos da inexistência de risco de envenenamento tendo em vista que a cauda do cometa era muito difusa.
                Em 1986 não houve pânico e sim uma grande mobilização das corporações voltadas para o turismo e entretenimento que passaram a anunciar eventos para os dias do carnaval – de nove a onze de fevereiro – que coincidiriam com o periélio do cometa (período em que a cauda se torna mais luminosa devida a proximidade com o sol). Clubes, hotéis e agências de turismos ofereciam seus espaços para quem quisesse observar o fenômeno, disponibilizando instrumentos de observação, como lunetas e até pequenos telescópios. Agências de turismo ofertaram cruzeiros, assegurando que em alto mar a visibilidade seria bem melhor. Mas, foi uma enorme frustração. O velho Halley (o primeiro registro de sua passagem pelo sistema solar, data de 240 a. C) não deu o ar da graça para o povo, devido à excessiva luminosidade artificial e a grande poluição atmosférica. Foi visto apenas pelos cientistas com acesso aos observatórios astronômicos.
                Naquela noite de nove de fevereiro de 1986 o cometa não veio, mas, na zona rural de uma pequena cidade do interior nordestino nasceu um menino: O primeiro filho do casal de pequenos lavradores Zeca de Mazé e Diolinda. Veio à luz pelas experientes mãos de D. Anunciata, parteira responsável pelo nascimento das três gerações que habitam o povoado. O parto se deu segundo o protocolo da obstetrícia sertaneja: quarto na penumbra, muita água morna e panos esterilizados com água fervida em tachos de cobre. Após o primeiro choro, como de praxe, a velha parteira cortou o cordão umbilical e pôs-se a examinar a higidez física do recém-nascido e, para seu horror, viu a maior fimose que já vira entre tantos e tantos cristãos que ajudara nascer. A do menino era enorme, alcançava o joelhinho! Mostrou para a mãe que, assustada começou a chorar e foi consolada pela velha parteira: - Não se assuste, é apenas um ‘courinho’ e vai encolher, e se não encolher, o doutor corta o que tá de sobra”. Naquele momento o menino ganhava seu primeiro apelido: courinho!
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                Desde que descobrira a gravidez, Diolina escolheu os nomes: - “se for menina vai se chamar Permínia, em homenagem à minha mãe; se for menino vai ser Deyvidson, só por que gosto do nome”. Zeca deu de ombros, posto que não pensava no assunto. Mas, num dia em que foi tomar umas talagadas na única birosca do povoado viu, num pedaço de jornal jogado sobre o balcão, a manchete: “O HALLEY ESTÁ CHEGANDO”. Sem mesmo saber do que se tratava, gostou do o nome: - “se for menino vai se chamar Halley, e pronto”!
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             Concluído o trabalho, com a higienização do bebê e a limpeza do quarto, D. Anunciata autorizou a entrado do emocionado pai. Ao vê-lo, Diolinda, entre lágrimas, falou:
— Chega mais perto Zeca, vem conhecer o Deyvidson, é a tua cara!
— Deivdson, coisa nenhuma, o nome dele é Halley! É menino homem, eu escolho!
— Mas Zeca, desde o início escolhi Deyvidson se fosse menino e você concordou...
— Concordei nada, apenas não falei, mas vi este nome no jornal, achei bonito e pronto, vai ser Halley.

                Neste ponto da discussão D. Anunciata resolveu intervir, ponderando: - “e por que não colocar Halley Deyvidson? Fica bonito e atende a vontade dos dois”. Os dois concordaram. O menino será então registrado e batizado com o nome de Halley Deyvdson Nunes da Silva.
                Diolinda pediu que o marido se aproximasse, desenrolou o bebê e mostrou a coisa. Zeca ficou estático, sem falar, motivando mais uma vez a intervenção e D. Anunciata que repetiu ao pai o que dissera à mãe: - “Não se assuste, é apenas um ‘courinho’ e vai encolher, e se não encolher, o doutor corta o que tá de sobra”.
                Passado o susto e vendo que o bebê se desenvolvia normalmente, foram se acostumando, mas resolveram manter o fato em segredo pois sabiam da maledicência do povo do local e queriam proteger o pequeno Halley que crescia, mas não na mesma proporção do “courinho”, que já alcançava o meio da canela. Aos seis meses, como é normal, o pequenino começou a engatinhar de “quatro” como muitas crianças o fazem e, como é comum no quente Nordeste, os pais as deixam nuas em casa, até certa idade. Halley, engatinhando de “quatro”, deixava no chão de terra um rastro que até facilitava sua localização quando saia da vista da mãe sempre às voltas com os trabalhos da casa. Um dia, enquanto a mãe estava ocupada com seus afazeres, Halley ultrapassou os limites da casa e chegou ao quintal sem que ela percebesse e só se dando conta da “fuga” quando ouviu o choro e os gritos de pavor da criança. Saiu correndo apavorada, seguindo a trilha deixada no chão, até encontrá-lo no terreiro cercado pelas galinhas que bicavam ferozmente seu “courinho”, talvez confundindo-o com uma minhoca. Ela enxotou as aves, pegou-o nos braços acalentando-o e fez um curativo emergencial com os recursos que dispunha em casa. Quando o marido chegou, resolveram levar o menino até “seo” Benedito Caixote, que fazia as vezes de enfermeiro da localidade,  que fez um curativo mais apropriado, mas recomendando uma cirurgia para cortar o excesso de pele, que ele mesmo poderia fazer tão logo as feridas cicatrizassem, pois dispunha de instrumental e conhecimento para tanto. Nonato não concordou pois, mesmo na simplicidade de seus conhecimentos sabia que o enfermeiro não tinha condições de realizar operação, principalmente em parte tão importante do filho.
                O tempo foi passando, Halley Deyvidson crescendo e os problemas causados pela deformidade surgindo e, para os quais, a mãe achava soluções paliativas. Quando o garoto urinava, o jato não tinha força para sair do “courinho”, provocando a formação de um inchaço num determinado ponto. Ela então, delicadamente, ia empurrando com os dedos até esvaziar. Ao inchaço, em sua inocência, o menino chamava de “balãozinho” e até se divertia como o processo. Quando ia sair com ele, ela enrolava o “courinho” e o prendia com um elástico... Iam dando esses jeitinhos, mas não se resolviam levá-lo a um médico.
                Como proteção, retardaram o quanto puderam sua matrícula na escola rural do povoado e só o fizeram aos sete anos quando os parentes e amigos próximos começaram a cobrar deles a educação do garoto. Mas Diolinda tomou todos os cuidados possíveis. Ensinou-o enrolar o “courinho” prendendo-o com a cueca. Recomendou também que deixasse para esvaziá-lo somente em casa, evitando assim expor-se aos olhares curiosos dos coleguinhas. E assim foi feito, sem problemas, pelos primeiros anos escolares, até que um dia a urina acumulou a um ponto insuportável e ele teve que correr ao banheiro para esvaziar o “courinho”, com a técnica que a mãe usava. Aí começaram seus tormentos. Alguns garotos o seguiram e viram estarrecidos – em princípio – e divertidos, a aberração. Naquele momento ele ganhou seu segundo apelido: “pato”!
                 Halley se sentiu humilhado e, furioso, não quis mais voltar à escola, sendo obrigado pelos pais a continuar.
                Como os pais nunca o levaram ao médico – o pai por ignorância e a mãe por indolência – Halley Deyvidson seguiu pela vida arrastando seu “courinho” e seus tormentos até completar dezoito anos quando, desafiando o pai, mas incentivado pela mãe, resolveu ir para a cidade procurar tratamento. No posto de saúde, o médico que o atendeu condoeu-se com a triste história de sofrimento do rapaz causado pela ignorância dos pais e o encaminhou a um cirurgião que fez a circuncisão retirando o excesso do couro e o que sobrou foi pouco. A parte funcional do conjunto atrofiara e Halley Deyvidson ganhou seu terceiro apelido: “pirulito de quermesse”! Que lhe foi dado pelas mocinhas da única casa de iniciação do local.
                Até hoje o homem Halley Deyvidson entra em transe quando ouve falar da aproximação de um cometa, pois acredita que seu destino está atrelado a esses corpos celestes.