terça-feira, 16 de junho de 2020

O ESTRANHO



Daniel Cariello*
                O estranho chega de bicicleta, pára em frente ao portão da vila, digita um código no interfone e aguarda. Parece que ninguém responde, pois ele volta a apertar as teclas, conferindo o número na tela do celular. Guarda o aparelho no bolso, ajeita a mochila em suas costas e fica olhando para o interfone, como se isso obrigasse alguém do outro lado a responder, o que não acontece. Ele bate o pé, tira o telefone do bolso, faz menção de ligar, mas não concretiza o ato. Súbito, descobre-me no lusco fusco.
— Ei, moço!
                Estamos apenas Louise e eu na vila, um beco sem saída e com algumas casas. Descemos da nossa para esticar um pouco as pernas e para Louise poder pular corda, o que faz com muita desenvoltura. Mas interrompemos as atividades para acompanhar a movimentação desse raro visitante em tempos de confinamento.
— Moço, aqui!
                Viro para trás, procurando outra pessoa, só para confirmar o que já sei: é comigo mesmo que ele está falando. E agora, como reagir ao estranho, esse ser desaparecido de nossas vidas nas últimas semanas? Fico olhando para ele, torcendo para que alguém do outro lado do interfone interfira, mas não acontece.
— Ei, pode me ajudar? Tô querendo ir à casa 2, mas ninguém atende.
— Oi? - perguntei, tentando me livrar do problema, sem entretanto saber como.
— A casa 2, tô tocando lá, ninguém responde.

                Fico tão atrapalhado com a chegada do estranho que não sei o que fazer: se aviso na casa 2, se abro o portão para ele entrar, se fujo correndo...
— O que você quer na casa 2?
— Vim entregar uma pizza.
— De quê?
— Como?
— Com quem, quero dizer, com quem você quer falar?
                Ele não precisa responder, porque no mesmo instante um solitário vizinho mascarado pede licença ao estranho e abre o portão da vila. Ele aproveita a brecha e entra junto, tentando explicar que ia à casa 2, mas o vizinho nem dá bola.
                Louise e eu abrimos a passagem para estranho, que sem parar pergunta onde fica a tal casa 2. Apontamos com o cotovelo. Ele se detém em frente à porta e toca a campainha. Como ninguém responde, toca novamente. Ao se preparar para uma terceira tentativa, uma fresta se abre. De lá, surge uma mão, que recolhe a encomenda e retorna sorrateira para onde saíra.
                Ele ajeita a mochila nas costas, dá meia-volta, passa novamente por nós, abre o portão, monta em sua bicicleta e desaparece, depois de trazer para a vila um pouco do mundo lá fora, o estranho.
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Esse texto é o terceiro da série "Crônicas isoladas", que continuará durante a quarentena

Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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