quinta-feira, 3 de setembro de 2020

REVOADA



Marcelo D'Alencourt

Olho aqui pela janela do meu ape e vejo, volta e meia, revoadas de pombos. São vários. Inúmeros.  Sobem, descem, giram e continuam o belo balé até cansar. Aí estacionam em alguma cobertura e ali permanecem recuperando o gás pra seguir a apresentação. Confesso que não sou muito fã da ave. Fico aqui pensando em como, nós humanos, somos parecidos com eles. Viajamos nesse vida com inúmeros conhecidos mais ou menos próximos, onde buscamos confiança e presença pra realizar nossas acrobacias grupais. Acho que é uma  forma de compensar nossa acachapante solidão.  Suspeito que os pombos sejam bem mais felizes intuitivamente,  afinal de contas, como os outros irracionais, não sabem do fim, comum a todos...Penso na coragem humana em seguir adiante mesmo sabendo do epílogo da história. Opa, perai, vejo um pombo a menos na revoada. Achei ele. Não voltou ao balé.  Parece cansado. Se arrasta na marquise do prédio onde pararam há pouco. Fica pra trás e, do seu jeito, clama por socorro que não vem. Os outros? Foram, faz tempo. Ele respira ofegante, caminha, ensaia algumas tentativas de voo não correspondidas. Desiste. Procura água ou comida pra ré energizar. Não acha. Pensa nos antigos companheiros que o abandonaram e  que já não estão mais ali. Não desiste. Tenta um último e decidido voo no abismo que não acontece. Ele descobre que não consegue mais voar. Resta lutar na cobertura daquele prédio pela sobrevivência que será bem difícil, a cada instante. Como isso tudo aconteceu?!? Ele tinha acordado bem hoje. Que coisa o destino. Caminha agora com muitas dificuldades até um lugar coberto onde ali permanece aterrorizado pela situação.  Fica de costas pra parede pra se proteger. Começa a chover muito forte. Ele fica quietinho, sem se mexer. A fome é intensa. Cresce o desespero e o pânico sem fim. Até quando aguentará?  Nova tentativa de alçar antigos voos? Melhor não. Ele sabe que não dá. Sorte, amigo,  você vai precisar e de muita. Acabei mudando o foco e voltei pro apartamento pra tocar a vida. Esqueci o pombo. Foquei nos voos q precisava dar. No dia seguinte, olho pro céu e...nova revoada. Lembrei imediatamente dele e o procurei na cobertura do prédio.  Ele não se encontrava mais lá. Fiquei triste. O que aconteceu com ele? Prefiro acreditar que ele estava ali fazendo acrobacias junto com as outras aves, apesar de ser bem pouco provável.

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