quarta-feira, 6 de outubro de 2021

SONHO?


 

Márcio Antônio Monteiro Nobre - 2021                             

 

APRESENTAÇÃO

 

            Não é pretensão alguma em ser autor, escritor ou mesmo roteirista; entretanto sentado na heroica cadeira que já me aguenta por toda essa pandemia 20/21, e, diga-se, firme sem quebrar nada, muito forte a suportar por quase 15 horas diárias meu peso pesado. Um belo dia algo me chamou a atenção, busquei caneta e meu bloco de anotações profissionais e outros temas, iniciei, de uma só sentada, a rabiscar esse sonho, talvez...

 

A HISTÓRIA

 

            Ouvi ainda na primeira adolescência, uma história em que um senhor de mais ou menos 45 anos, contava para outro de menos idade, que atentamente e vestido com uma roupa impecável, verde, e, chamando minha atenção, o cinto com uma bela fivela que lhe apertava a barriga. Perfilado ouvia o relato e a cada instante franzia o cenho ou subia as sobrancelhas; mas nunca sorria, nem aquele que lhe falava.

            Momento tenso – lembro bem. Aquele homem vestido de verde dando um suspiro enorme, falou para o outro pausadamente dizendo: “me relate tudo novamente”.  O narrador não se fez de rogado e reiniciou a  narrativa. Já de orelhas em pé, ouriçadas para ouvir o que conversavam, cheguei até a sentar no batente da porta, bem próximo dos dois interlocutores.

            Nunca esqueci quando o moço disse, “vou te falar, mas não esqueça, foram muito duros estes dias”. Ah! A curiosidade bateu mais alto, me ajustei na calçada querendo chegar bem perto daqueles homens que se encostaram no carro estacionado, um automóvel lindo de cor vermelha. Quando reiniciaram a história que eu ouvi bem, e gravei como uma tatuagem que não sai mais de você.

            Naquele dia – assim iniciou a narrativa o homem mais velho, dizendo ao seu interlocutor (não pude ouvir a data, pois passou um carro fazendo zuada) –  estava na porta de minha casa quando um Jeep parou descendo dois policiais que se dirigiram a mim, mostrando um papel, dizendo que eu estava preso. Pasmo, sem reação alguma, apenas olhei para a entrada de minha casa, sendo está a última vez que há vi por muito tempo, e muito tempo se passara desde então... E quando voltei já não mais existia, nem noticia dos meus e não se sabia para onde tinham ido.

            Daquele instante até o dia que voltei, tudo aconteceu comigo, relata o homem com os olhos marejados de lágrimas; ouvi bem que foram vinte anos de longa agonia.  E continuou: entrei naquele Jeep já algemado, com os pulsos cortando de tão apertadas estavam desde quando maldosamente colocaram em mim; cada solavanco que o veículo fazia, mais sentia a dor aumentar nos meus braços, e aqueles policiais mudos e parecendo surdos, não respondiam aos meus apelos para que afrouxassem as algemas, pois estavam cortando meus pulsos.

            Rodamos por longos minutos – acho até por horas – entre ruas e estradas, sem que conhecesse muitos dos lugares por onde passamos até chegarmos em frente a um portão grande de cor cinza, que logo se abriu ao primeiro toque da buzina do Jeep, como se estivessem esperando sua chegada. Ainda Vi dois outros policiais abrindo tão pesado portão; e mais nada pude ver por horas seguidas. Vedaram-me os olhos, mas podia ouvir vozes dizendo que iria falar o que eles queriam saber. Puxado para fora do veículo sem qualquer cuidado, a dor já insuportável aumentava a cada puxão; lembro-me que passamos por uma porta, pois o sol deixou de clarear e esquentar meu corpo, e fui jogado ao chão que parecia ser de cerâmica, pois era frio. Daí, horas se passaram sem que percebesse quanto tempo se passou.

            Enfim a porta se abriu e levei o primeiro tapa de centenas que iria levar durante toda a minha estadia naquele lugar, que até hoje não sei identificar. Atentamente o ouvinte daquela conversa, olhando, sem mencionar uma palavra ou perguntar, a tudo ouvia fazendo trejeitos com as sobrancelhas. Penso que durante uns dois dias, não ouvi nenhuma fala, somente água me davam vez por outra, mas sempre com os olhos vendados. Nada podia ver, quando senti passadas fortes que se aproximavam de mim, e uma voz grossa e pausada me perguntou: vai começar a falar? Pensei rápido se perguntava sobre o que ou concordava. Como um raio pensei que se perguntasse sobre o que? Iria sofrer mais ainda; mesmo assim, num lampejo de honradez, perguntei sobre o que? Como resposta senti um tapa bem forte na orelha direita, que até hoje ainda sinto a lapada sofrida; pobre do meu joelho, que chute levou, causando uma dor terrível; e a mesma voz repetiu: vai começar a falar? Com a moral redobrada, respondi: não sei sobre o que falar... Penso que daquele momento, por um dia, nem água me deram.

            Quase não podia ouvir, tamanha era minha indignação ao presenciar aquele relato. Entre um suspiro e breve pausa que o homem fazia, dizia eu, bem baixinho, poxa, esse cara sofreu pra caramba! Cheguei a pensar em ir buscar uma garrafa com água e oferecer para aquele senhor; não pude, ele reiniciou a sua narrativa e eu estava ansioso para chegar ao seu final.... Já não tinha acanhamento de mostrar que estava ouvindo suas conversas. Vez por outra os homens olhavam pra mim, mas deviam pensar: ele não vai entender, deixa ouvir. Durante umas duas horas, fiquei ali, sem beber ou comer e com uma vontade danada de mijar, mas nem pensei em sair dali.

            Quase arranquei os cabelos com o que ouvi: Quando por fim resolveram voltar, e novamente perguntaram: vai falar? Mudei de tática e falei: podem perguntar? A terrível pergunta veio imediatamente: quem são seus amigos? Iniciava-se assim uma série de indagações, da escola? Perguntei já com medo de mais um tapa. Não! Falou a voz. Seus amigos de baderna! De brincadeira? – Ousei a perguntar.  Não, de baderna contra o governo! Quero nomes, endereços, e os locais onde estão escondidos – isso  com a voz  zangada. Dizer que não sabia do que estavam falando, fez aumentar a irritação do inquisidor, de tal forma meu estomago sentiu a pancada tão violenta que acho que desmaiei, pela pancada e mesmo por estar muito fraco, sem comer, muito menos beber... Dormir nem pensar.

            Eu ali, quase grudado no piso do batente, senti a dor daquele homem que relatava sua história. Vi em momentos rápidos com os olhos fechados, o coturno batendo no meu estomago, triste engano que aquela brutalidade fosse a pior, seguiram-se dias com constantes espancamentos, com várias modalidades de tortura. Não podia delatar meus amigos, que apenas tinham um ideal comigo, expúnhamos nossos pensamentos nos palcos e praças quando éramos corridos para não sermos presos, dizia o homem em sua dramática narrativa, lembro-me bem que daquele dia em diante, foram usadas muitas modalidades de interrogatórios, até mesmo uma mulher foi mandada para conseguir que falasse, e com modos psicológicos tentou de todas as formas me persuadir para ter os nomes dos meus amigos, que entendia então, que eles não estavam presos, porque insistiam em perguntar, e firme não dizia e respondia que não tinha noção do que queriam saber.

            Foi um desastre pra mim, que ela não tivesse conseguido, seguiu-se uma terrível seção de tortura, até que me mudaram de sala, fui levado para uma totalmente escura, que só via claridade quando era acesa uma enorme lâmpada em um abajur diretamente no meu rosto, me deixando cego por instantes; doíam tanto meus olhos que quase cheguei a contar e entregar meus amigos, minhas forças já estavam minguando, mas, a dignidade do meu ego era maior, não iria conseguir viver com tamanha traição. Firme sofria horrores, e ia definhando pois não conseguia mais comer a péssima comida que serviam, e a água que tinha um gosto ruim; não sei por quantos dias passei naquele lugar.

            O homem de verde, calmo, com fisionomia ruborizada me fazia perceber que com a minha pouca idade, estava indignado com tamanha crueldade humana. Ouvi o homem de verde dizer: mesmo com sua dor, continue com sua narrativa. Vi, nos olhos do mais velho, lágrimas escorrendo, mas mesmo assim continuou.

            Após alguns dias fui levado para um outro compartimento que tinha muitos vergalhões e argolas nas paredes, que ao chegar não entendi para que serviria; amarrado fui com os braços estendidos do corpo, como em cruz, suspensos acima da cabeça, que com o peso do meu corpo, sentia que meus braços iriam arrancar do meu tórax, não podia ficar todo tempo em pé, já fraco, sem forças para aguentar. Perto de anoitecer, aquela primeira voz grossa novamente me fez a mesma pergunta, sem forças, quase não aguentando, mas resistindo ainda, respondi, dando-lhe a mesma resposta: sobre o que? Tremendo chute no mesmo joelho machucado, que me fez ajoelhar de tanta dor, ou seja, quase ajoelhar, pois não consegui tocá-los no chão, pois os braços amarrados nas argolas não deixavam; pensei que não iria sair com vida daquele lugar, e se saísse, iria praticar o suicídio na frente do primeiro quartel que passasse, e isso me martelou por muitos dias.

            Surpreso quando me levaram para uma sala com cadeira, e nela me sentaram, deram-me água fresca, uma boa alimentação; pensei, iriam me mandar embora... Só teria que melhorar a aparência, pois tinham entendido que nada conseguiriam saber dito por mim. Fiquei por horas relaxando, não demorou muito pra entender que a nova técnica de tortura estava iniciando, passei a ouvir vozes do outro lado da parede, entre sussurros e lamentos, eles diziam, vão me matar, não acredito que ele tenha me delatado, já deve ter até morrido, não iria aguentar tanto sofrimento. Apurei mais os ouvidos e bem baixinho ouvia quase sem voz um outro que respondia: não acredito, só queria ser enterrado na minha cidade, passando a ouvir só gemidos de dor até a noite, quando me   trouxeram o jantar.

            Na manhã seguinte um pouco recuperado, vieram e me levaram para outro lugar, viajei por não sei quantas horas – até um pensamento alegre passou por mim: iriam me soltar; puro engano, logo chegamos a um lugar que também jamais soube onde ficava e lá permaneci por alguns meses, sozinho, em um quarto, e sempre alguém deixava água e comida boa, um banquete em relação as outras; desde então não conversei com mais ninguém, nem me interrogaram mais.

            Um belo dia nova surpresa, me pegaram, e fui levado para outro lugar, que também não posso reconhecer, pois não vi, a não ser uma sala, e um quarto que dele não podia sair, com janelas trancadas, e grades grossas com cadeados por dentro; cheguei a ouvir longe latido de cachorro, porém nunca se aproximava, e nada mais ouvia, um silencio aterrador; me peguei várias vezes falando só, cantava, sempre procurando ouvir alguma coisa, e não sei por quanto tempo ali fiquei, sei que não foi pouco.

            Com o passar dos dias, interrompeu chorando aquele homem contador de sua história,  passando um pedaço de pano no rosto, como se enxugasse lágrimas que escorriam, olhei para o homem de verde, e vi que ele também chorava com tamanha tortura que aquele senhor passara, mas logo, refeito continuou sua contundente história. Comecei a pensar, a fazer uma retrospectiva de tudo, e um fato me chamou atenção, naquela sala ouvindo os sussurros do outro compartimento, e sem tortura física, conclui que tudo foi mais uma cruel tortura psicológica, a pior de todas, pois me fizeram acreditar que seria eu o responsável pelas mortes daquelas pessoas que falavam baixinho, como se eu as tivesse traído. A dor psicológica foi enorme e me persegue até hoje. Não sei se eram meus amigos, ou se foi uma cruel técnica para amedrontar e falasse o que queriam saber. Não sei quanto tempo ali fiquei, até que um dia me deixaram numa estrada, e como não sabia para onde ir, resolvi seguir caminhando no rumo que o Jeep tomara.

            Grande a caminhada, cheguei à uma cidade, sem dinheiro, com fome e cansado, sem poder procurar minha família, que  no dia que me prenderam, eram eu, mãe e uma irmã; sem saber quem, fui ajudado, falei da minha cidade, ganhando uma passagem e algum dinheiro para me alimentar; me pareceu que aquela pessoa estava ali esperando para me ajudar a voltar  pra casa. Consegui chegar na rua que morava, e ao número da casa que residia, e as pessoas que residiam lá, não os conheci, nem souberam me informar dos antigos moradores; tentei outros vizinhos, que também não me conheciam, em nada podiam ajudar a achar minha família; procurei em vão, quando resolvi  ir embora para o Rio de Janeiro, procurar trabalho, e tentar localizar para que lugar minha família tinha ido morar, e que até hoje não os encontrei, apesar de insistentemente os procurar sem, no entanto, ter qualquer notícia dela.

            Os amigos que tanto queriam localizar meus algozes, também não os vi mais; soube de toda confusão que se instalou no país, enquanto estive preso sem qualquer contato com o mundo, não vi passar, nem sei o que contar, a não ser a minha história. O homem baixou a cabeça, como se sua narração pesasse muito em suas lembranças; mas o homem de verde – não sei a razão de terem se encontrado naquele local –  o abraçou dizendo: você esteve sempre com Deus, haverá de um dia encontrar quem procura.

            Não percebi quanto tempo foi toda essa narrativa, somente quando uma pessoa de minha família falou comigo, me levando para dentro de casa. Antes, porém, olhei para fora e só vi o automóvel parado no lugar em que estavam aqueles homens conversando; já dentro de casa, perguntei se estava dormindo na porta, minha tia respondeu que parecia anestesiado quando me chamou e até hoje não sei dizer se foi verdadeiro o que narrei, ou se foi um sonho ao dormir no batente da porta de casa, quando admirava o lindo carro vermelho, porém é bem viva essa história na minha memória.

2 comentários:

Falcão disse...

Parabéns, bela história.

Anônimo disse...

Parabéns! Excelente conto!