Márcio
Antônio Monteiro Nobre - 2021
APRESENTAÇÃO
Não é
pretensão alguma em ser autor, escritor ou mesmo roteirista; entretanto sentado
na heroica cadeira que já me aguenta por toda essa pandemia 20/21, e, diga-se,
firme sem quebrar nada, muito forte a suportar por quase 15 horas diárias meu
peso pesado. Um belo dia algo me chamou a atenção, busquei caneta e meu bloco
de anotações profissionais e outros temas, iniciei, de uma só sentada, a
rabiscar esse sonho, talvez...
A HISTÓRIA
Ouvi ainda
na primeira adolescência, uma história em que um senhor de mais ou menos 45
anos, contava para outro de menos idade, que atentamente e vestido com uma
roupa impecável, verde, e, chamando minha atenção, o cinto com uma bela fivela
que lhe apertava a barriga. Perfilado ouvia o relato e a cada instante franzia
o cenho ou subia as sobrancelhas; mas nunca sorria, nem aquele que lhe falava.
Momento
tenso – lembro bem. Aquele homem vestido de verde dando um suspiro enorme, falou
para o outro pausadamente dizendo: “me relate tudo novamente”. O narrador não se fez de rogado e reiniciou
a narrativa. Já de orelhas em pé,
ouriçadas para ouvir o que conversavam, cheguei até a sentar no batente da
porta, bem próximo dos dois interlocutores.
Nunca
esqueci quando o moço disse, “vou te falar, mas não esqueça, foram muito duros
estes dias”. Ah! A curiosidade bateu mais alto, me ajustei na calçada querendo
chegar bem perto daqueles homens que se encostaram no carro estacionado, um
automóvel lindo de cor vermelha. Quando reiniciaram a história que eu ouvi bem,
e gravei como uma tatuagem que não sai mais de você.
Naquele dia
– assim iniciou a narrativa o homem mais velho, dizendo ao seu interlocutor
(não pude ouvir a data, pois passou um carro fazendo zuada) – estava na porta de minha casa quando um Jeep
parou descendo dois policiais que se dirigiram a mim, mostrando um papel,
dizendo que eu estava preso. Pasmo, sem reação alguma, apenas olhei para a
entrada de minha casa, sendo está a última vez que há vi por muito tempo, e
muito tempo se passara desde então... E quando voltei já não mais existia, nem
noticia dos meus e não se sabia para onde tinham ido.
Daquele
instante até o dia que voltei, tudo aconteceu comigo, relata o homem com os olhos
marejados de lágrimas; ouvi bem que foram vinte anos de longa agonia. E continuou: entrei naquele Jeep já algemado,
com os pulsos cortando de tão apertadas estavam desde quando maldosamente
colocaram em mim; cada solavanco que o veículo fazia, mais sentia a dor
aumentar nos meus braços, e aqueles policiais mudos e parecendo surdos, não
respondiam aos meus apelos para que afrouxassem as algemas, pois estavam
cortando meus pulsos.
Rodamos por longos minutos – acho até por horas – entre ruas e estradas, sem que conhecesse muitos dos lugares por onde passamos até chegarmos em frente a um portão grande de cor cinza, que logo se abriu ao primeiro toque da buzina do Jeep, como se estivessem esperando sua chegada. Ainda Vi dois outros policiais abrindo tão pesado portão; e mais nada pude ver por horas seguidas. Vedaram-me os olhos, mas podia ouvir vozes dizendo que iria falar o que eles queriam saber. Puxado para fora do veículo sem qualquer cuidado, a dor já insuportável aumentava a cada puxão; lembro-me que passamos por uma porta, pois o sol deixou de clarear e esquentar meu corpo, e fui jogado ao chão que parecia ser de cerâmica, pois era frio. Daí, horas se passaram sem que percebesse quanto tempo se passou.
Enfim a
porta se abriu e levei o primeiro tapa de centenas que iria levar durante toda
a minha estadia naquele lugar, que até hoje não sei identificar. Atentamente o
ouvinte daquela conversa, olhando, sem mencionar uma palavra ou perguntar, a
tudo ouvia fazendo trejeitos com as sobrancelhas. Penso que durante uns dois
dias, não ouvi nenhuma fala, somente água me davam vez por outra, mas sempre
com os olhos vendados. Nada podia ver, quando senti passadas fortes que se
aproximavam de mim, e uma voz grossa e pausada me perguntou: vai começar a
falar? Pensei rápido se perguntava sobre o que ou concordava. Como um raio
pensei que se perguntasse sobre o que? Iria sofrer mais ainda; mesmo assim, num
lampejo de honradez, perguntei sobre o que? Como resposta senti um tapa bem
forte na orelha direita, que até hoje ainda sinto a lapada sofrida; pobre do
meu joelho, que chute levou, causando uma dor terrível; e a mesma voz repetiu:
vai começar a falar? Com a moral redobrada, respondi: não sei sobre o que
falar... Penso que daquele momento, por um dia, nem água me deram.
Quase não
podia ouvir, tamanha era minha indignação ao presenciar aquele relato. Entre um
suspiro e breve pausa que o homem fazia, dizia eu, bem baixinho, poxa, esse
cara sofreu pra caramba! Cheguei a pensar em ir buscar uma garrafa com água e
oferecer para aquele senhor; não pude, ele reiniciou a sua narrativa e eu
estava ansioso para chegar ao seu final.... Já não tinha acanhamento de mostrar
que estava ouvindo suas conversas. Vez por outra os homens olhavam pra mim, mas
deviam pensar: ele não vai entender, deixa ouvir. Durante umas duas horas,
fiquei ali, sem beber ou comer e com uma vontade danada de mijar, mas nem
pensei em sair dali.
Quase
arranquei os cabelos com o que ouvi: Quando por fim resolveram voltar, e
novamente perguntaram: vai falar? Mudei de tática e falei: podem perguntar? A
terrível pergunta veio imediatamente: quem são seus amigos? Iniciava-se assim
uma série de indagações, da escola? Perguntei já com medo de mais um tapa. Não!
Falou a voz. Seus amigos de baderna! De brincadeira? – Ousei a perguntar. Não, de baderna contra o governo! Quero
nomes, endereços, e os locais onde estão escondidos – isso com a voz
zangada. Dizer que não sabia do que estavam falando, fez aumentar a
irritação do inquisidor, de tal forma meu estomago sentiu a pancada tão
violenta que acho que desmaiei, pela pancada e mesmo por estar muito fraco, sem
comer, muito menos beber... Dormir nem pensar.
Eu ali,
quase grudado no piso do batente, senti a dor daquele homem que relatava sua
história. Vi em momentos rápidos com os olhos fechados, o coturno batendo no
meu estomago, triste engano que aquela brutalidade fosse a pior, seguiram-se
dias com constantes espancamentos, com várias modalidades de tortura. Não podia
delatar meus amigos, que apenas tinham um ideal comigo, expúnhamos nossos
pensamentos nos palcos e praças quando éramos corridos para não sermos presos,
dizia o homem em sua dramática narrativa, lembro-me bem que daquele dia em
diante, foram usadas muitas modalidades de interrogatórios, até mesmo uma mulher
foi mandada para conseguir que falasse, e com modos psicológicos tentou de
todas as formas me persuadir para ter os nomes dos meus amigos, que entendia
então, que eles não estavam presos, porque insistiam em perguntar, e firme não
dizia e respondia que não tinha noção do que queriam saber.
Foi um
desastre pra mim, que ela não tivesse conseguido, seguiu-se uma terrível seção
de tortura, até que me mudaram de sala, fui levado para uma totalmente escura,
que só via claridade quando era acesa uma enorme lâmpada em um abajur
diretamente no meu rosto, me deixando cego por instantes; doíam tanto meus
olhos que quase cheguei a contar e entregar meus amigos, minhas forças já
estavam minguando, mas, a dignidade do meu ego era maior, não iria conseguir
viver com tamanha traição. Firme sofria horrores, e ia definhando pois não
conseguia mais comer a péssima comida que serviam, e a água que tinha um gosto
ruim; não sei por quantos dias passei naquele lugar.
O homem de
verde, calmo, com fisionomia ruborizada me fazia perceber que com a minha pouca
idade, estava indignado com tamanha crueldade humana. Ouvi o homem de verde
dizer: mesmo com sua dor, continue com sua narrativa. Vi, nos olhos do mais
velho, lágrimas escorrendo, mas mesmo assim continuou.
Após alguns
dias fui levado para um outro compartimento que tinha muitos vergalhões e
argolas nas paredes, que ao chegar não entendi para que serviria; amarrado fui
com os braços estendidos do corpo, como em cruz, suspensos acima da cabeça, que
com o peso do meu corpo, sentia que meus braços iriam arrancar do meu tórax,
não podia ficar todo tempo em pé, já fraco, sem forças para aguentar. Perto de
anoitecer, aquela primeira voz grossa novamente me fez a mesma pergunta, sem
forças, quase não aguentando, mas resistindo ainda, respondi, dando-lhe a mesma
resposta: sobre o que? Tremendo chute no mesmo joelho machucado, que me fez
ajoelhar de tanta dor, ou seja, quase ajoelhar, pois não consegui tocá-los no
chão, pois os braços amarrados nas argolas não deixavam; pensei que não iria
sair com vida daquele lugar, e se saísse, iria praticar o suicídio na frente do
primeiro quartel que passasse, e isso me martelou por muitos dias.
Surpreso
quando me levaram para uma sala com cadeira, e nela me sentaram, deram-me água
fresca, uma boa alimentação; pensei, iriam me mandar embora... Só teria que
melhorar a aparência, pois tinham entendido que nada conseguiriam saber dito
por mim. Fiquei por horas relaxando, não demorou muito pra entender que a nova
técnica de tortura estava iniciando, passei a ouvir vozes do outro lado da
parede, entre sussurros e lamentos, eles diziam, vão me matar, não acredito que
ele tenha me delatado, já deve ter até morrido, não iria aguentar tanto
sofrimento. Apurei mais os ouvidos e bem baixinho ouvia quase sem voz um outro
que respondia: não acredito, só queria ser enterrado na minha cidade, passando
a ouvir só gemidos de dor até a noite, quando me trouxeram o jantar.
Na manhã
seguinte um pouco recuperado, vieram e me levaram para outro lugar, viajei por
não sei quantas horas – até um pensamento alegre passou por mim: iriam me
soltar; puro engano, logo chegamos a um lugar que também jamais soube onde
ficava e lá permaneci por alguns meses, sozinho, em um quarto, e sempre alguém
deixava água e comida boa, um banquete em relação as outras; desde então não
conversei com mais ninguém, nem me interrogaram mais.
Um belo dia
nova surpresa, me pegaram, e fui levado para outro lugar, que também não posso
reconhecer, pois não vi, a não ser uma sala, e um quarto que dele não podia
sair, com janelas trancadas, e grades grossas com cadeados por dentro; cheguei
a ouvir longe latido de cachorro, porém nunca se aproximava, e nada mais ouvia,
um silencio aterrador; me peguei várias vezes falando só, cantava, sempre
procurando ouvir alguma coisa, e não sei por quanto tempo ali fiquei, sei que
não foi pouco.
Com o passar
dos dias, interrompeu chorando aquele homem contador de sua história, passando um pedaço de pano no rosto, como se
enxugasse lágrimas que escorriam, olhei para o homem de verde, e vi que ele
também chorava com tamanha tortura que aquele senhor passara, mas logo, refeito
continuou sua contundente história. Comecei a pensar, a fazer uma retrospectiva
de tudo, e um fato me chamou atenção, naquela sala ouvindo os sussurros do
outro compartimento, e sem tortura física, conclui que tudo foi mais uma cruel
tortura psicológica, a pior de todas, pois me fizeram acreditar que seria eu o
responsável pelas mortes daquelas pessoas que falavam baixinho, como se eu as
tivesse traído. A dor psicológica foi enorme e me persegue até hoje. Não sei se
eram meus amigos, ou se foi uma cruel técnica para amedrontar e falasse o que
queriam saber. Não sei quanto tempo ali fiquei, até que um dia me deixaram numa
estrada, e como não sabia para onde ir, resolvi seguir caminhando no rumo que o
Jeep tomara.
Grande a
caminhada, cheguei à uma cidade, sem dinheiro, com fome e cansado, sem poder
procurar minha família, que no dia que
me prenderam, eram eu, mãe e uma irmã; sem saber quem, fui ajudado, falei da
minha cidade, ganhando uma passagem e algum dinheiro para me alimentar; me
pareceu que aquela pessoa estava ali esperando para me ajudar a voltar pra casa. Consegui chegar na rua que morava,
e ao número da casa que residia, e as pessoas que residiam lá, não os conheci,
nem souberam me informar dos antigos moradores; tentei outros vizinhos, que
também não me conheciam, em nada podiam ajudar a achar minha família; procurei
em vão, quando resolvi ir embora para o
Rio de Janeiro, procurar trabalho, e tentar localizar para que lugar minha
família tinha ido morar, e que até hoje não os encontrei, apesar de
insistentemente os procurar sem, no entanto, ter qualquer notícia dela.
Os amigos
que tanto queriam localizar meus algozes, também não os vi mais; soube de toda
confusão que se instalou no país, enquanto estive preso sem qualquer contato
com o mundo, não vi passar, nem sei o que contar, a não ser a minha história. O
homem baixou a cabeça, como se sua narração pesasse muito em suas lembranças;
mas o homem de verde – não sei a razão de terem se encontrado naquele local
– o abraçou dizendo: você esteve sempre
com Deus, haverá de um dia encontrar quem procura.
Não percebi
quanto tempo foi toda essa narrativa, somente quando uma pessoa de minha família
falou comigo, me levando para dentro de casa. Antes, porém, olhei para fora e
só vi o automóvel parado no lugar em que estavam aqueles homens conversando; já
dentro de casa, perguntei se estava dormindo na porta, minha tia respondeu que
parecia anestesiado quando me chamou e até hoje não sei dizer se foi verdadeiro
o que narrei, ou se foi um sonho ao dormir no batente da porta de casa, quando
admirava o lindo carro vermelho, porém é bem viva essa história na minha
memória.
2 comentários:
Parabéns, bela história.
Parabéns! Excelente conto!
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