Ananda Sampaio*
Tudo que eu
queria era ser garçonete. Não, eu não tinha esse sonho quando criança. Passei a
delirar com a chegada da idade adulta, comecei a me alimentar de narrativas
mirabolantes, substancialmente, diga-se de passagem. E esqueci os sonhos da
criança pretensiosa que fui outrora.
Garçonete,
patins, bloquinho e caneta. Anotar pedidos, ouvir reclamações e elogios. Uma
coisa simples, a minha existência pareceria assim, aos meus olhos, não afetar o
mundo. E meus atropelos no horário de pico não produziriam efeitos tão
drásticos na humanidade. No máximo, um cliente insatisfeito.
Após o
expediente iria para um minúsculo apartamento de dois cômodos. Um gatinho pra
dar leite e esquentar a cama. Pronto! Vez ou outra, quando me desse na telha,
juntaria meus poucos pertences e partiria para a próxima. Sem aviso prévio.
Afinal, encontrar outra garçonete para me substituir não deveria ser difícil.
Assim eu
passaria a vida, avançando e recuando. Minimizando os efeitos da minha vida no
mundo. Sempre me senti culpada por existir: o lixo que produzo, as pessoas que
magoo, a minha inércia política, meu eterno cansaço para receber visitas e
fazer sala, minha indisposição para pessoas babacas. As minhas propulsões
seriam desfragmentadas a cada partida. Tudo seria dissolvido e antes que alguma
catástrofe se instalasse em mim, eu já teria feito a mala e deixado pra trás o
meu traço na vida dos outros. A memória é seletiva, se encarregaria de apagar
com o passar do tempo a minha presença. Assim é e sempre será.
Quando criança
sonhava com tantas coisas, porque desde criança nos dizem que os sonhos podem
ser de extensões gigantescas e assim eu fiz. Sonhei que poderia ser invisível,
que poderia gravar os meus sonhos, aqueles do sono, para assistir numa fita
cassete mais tarde. Que as bonecas se moviam e que os cães eram mais
inteligentes que o homem. Só sonhei em ser garçonete quando me tornei uma
criança grande e o mundo me atropelou. Descobri que ser garçonete era a melhor
maneira de renegar a ele.
Eu leria meus
livros preferidos dezenas de vezes e gastaria meu dinheiro na livraria e com
hambúrgueres e milk shake. Quando saísse do trabalho não teria que me preocupar
com os últimos desenrolamentos do mundo dos homens, seus mercados, suas bolsas
de valores e a cotação que a vida adquire todo dia. Não me importaria com o mal
estar social, com a falta de empatia, de humanidade ou com a discriminação
racial e de gênero. Eu planaria pelo mundo, talvez um fantasma, um observadora,
uma sem nome a assistir placidamente o desastre claudicante desse projeto de
mundo.
Não há
planejamento ou planilha quando se trata de sentimentos. Tudo acontece, fios
que se enroscam e formam uma bagunça sem tamanho. Um emaranhado, atropelos e
descompassos. Estou sempre tão fora do ritmo que acho que ninguém mais percebe,
além de mim mesma.
— Qual o seu pedido, senhor?
— Amor à la carte, por favor.
*Jornalista, estudante de Letras e integrante do @coletivoleitura
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