A. J. de O. Monteiro
Não
há muitos registros sobre a minha história ou sobre meus ancestrais. Sei apenas
que surgimos na Grécia, segundo informações que colhi. Essa origem no berço da
democracia me enche (sem duplo sentido), de orgulho e explica o fato de termos
servido com a mesma dedicação às nobrezas de todo o mundo bem como aos mais
humildes da terra, sem discriminar cor, raça, gênero, ou posição social. Somos
– assim penso – um símbolo inconteste da democracia. Isso me anima escrever esta
breve passagem de minha vida.
Lembro-me
com clareza, apesar do tempo decorrido, do dia em que deixei a lojinha no
entorno do Mercado Central – onde se situava o comércio popular da cidade,
quase que totalmente dominado por imigrantes sírios e libaneses – comprado por
um senhor de bons modos, que me levou para sua residência devidamente
disfarçado, pois não era de bom tom expor-nos publicamente. Coisas de então.
Coube-me, na enorme casa, com grande número de moradores, atender aos dois
pré-adolescentes da família e logo na primeira noite de serviço percebi que a
tarefa não seria das mais desagradáveis. Os pré – doravante os tratarei assim –
eram irreverentes, galhofeiros e desorganizados como só os pré podem ser, mas
afáveis; simpáticos, até. Utilizaram os meus préstimos sem abuso e apenas os
respingos me incomodavam, talvez pela minha inexperiência no “métier”.
A
rotina era normal. Prestava meus serviços noturnos e, pela manhã, tão logo os
pré saiam para a escola era recolhido pelo garoto de serviços da casa e levado ao
quintal onde me reunia então com os demais penicos da casa para sermos
esvaziados, lavados e postos a secar ao sol – e que sol! Ficávamos na canícula
por todo o dia, comentando as atividades noturnas da família, que não julgo
razoável tornar público, por questão ética. Ao anoitecer o mesmo garoto de
serviços nos pegava no quintal e nos distribuía pelos respectivos aposentos.
Ele nunca errava, apesar de sermos todos muito parecidos, revestidos de ágata
branca, com bordas e asas azuis, variando, e apenas um pouco, de tamanho.
Naquele primeiro contato com a comunidade, reparei que quase todos o penicos
apresentavam em seus revestimentos, algumas escaras. Logo fiquei sabendo a
razão: O garoto de serviços, talvez para abreviar seu trabalho, tentava levar a
maior quantidade de nós por vez (éramos mais de uma dezena) e às vezes nos
deixava cair provocando a maior barulheira e, óbvio, a bronca dos donos da
casa. Quem já ouviu o barulho de um penico caindo, nunca esquece... É peculiar,
inconfundível... Os pré, galhofeiros, como já disse, gritavam uníssono: “abram
alas que a banda vai passar”! Todos riam, menos o chefe da família, sério e
compenetrado. Coincidência ou não, observei que esses incidentes aconteciam
sempre que a família recebia visitas, pelo que aduzi talvez se tratasse de uma
pequena vingança do garoto de serviços, tentando constranger a família ante os
visitantes.
A
vida seguia tranquila em sua rotina e a noite era de muito trabalho, mas
divertida, pois os pré antes de dormir faziam uma resenha do dia contando suas
peripécias. Algumas um tanto quanto inverossímeis, diga-se, mas releve-se,
afinal eram pré-adolescentes típicos e gostavam de fantasiar um pouco. Eram
muito levados e, por isso mesmo, virava e mexia levavam uma boa surra de
palmatória. Mas eles não se emendavam; saiam de uma, entravam noutra.
De
uma dessas aventuras, fui testemunha ocular. Certo dia um visitante chegou a
casa, vindo do interior para algumas consultas médicas. Era parente da família
e vinha, soube, com certa frequência, mas depois de minha chegada, era a
primeira vez. Foi-lhe designado o nosso quarto para dormir e logo descobri por
que os pre ficaram alegres. O visitante era bonachão, simpático; era de contar pilhérias
e “causos” bem ao gosto deles – e meu também. Acontece que o visitante passou a
tomar um remédio para os rins, que o fazia mijar verde. Um verde cana, que em
contraste com o branco do penico que lhe foi destinado, chamava bastante a
atenção e, claro, despertou a curiosidade dos pré que, sem demora perguntaram
ao visitante a razão daquilo. Ele explicou de maneira a eles entenderem,
mostrando-lhes, inclusive, a caixa do medicamento.
O
visitante, terminadas as consultas, voltou para sua cidade e, na noite daquele
mesmo dia, ouvi dos dois, entre gostosas gargalhadas, a traquinagem que
aprontaram: Aproveitando-se de um descuido do visitante, retiraram do pote de
remédio, duas cápsulas – eram muitas e ele não perceberia. Tomaram-nas, uma
cada um, esperaram o anoitecer e, como sempre, na hora da Voz do Brasil, foram
para a esquina encontrar com a turma e quando todos estavam reunidos,
iluminados pela luz do poste, anunciaram e deram o espetáculo: Ante o olhar
estarrecido e admirado dos colegas, mijaram verde! Os outros entraram em êxtase
e queriam por que queriam o segredo daquele fenômeno. Os pre negaram-se a
contar – claro que não iriam perder a chance de serem os “caras” do pedaço.
No
horário determinado pelos pais todos retornaram para suas casas. Os pre
curtindo os prazeres da repentina fama e os demais admirados, encucados e
morrendo de inveja...
Na
noite seguinte tomei conhecimento dos desdobramentos da aventura. Nossos heróis
esqueceram-se de pedir segredo aos colegas e esses, euforicamente relataram aos
pais a proeza mictória dos amigos. Os pais, desconfiados e preocupados, logo no
dia seguinte trataram de falar aos pais dos pré, que de pronto mataram a
charada e, claro, impuseram aos dois sete dias sem esquina.
O fato já ia quase esquecido e a vida retomando
sua rotina quando entre nós começou a circular um boato de que se instalaria na
casa um sistema sanitário mais moderno, com vasos de louças e descargas
hidráulicas. Os boatos materializaram-se com a presença dos pedreiros,
escavando, instalando tubulações e todos os demais aparatos do sistema.
Inseguros temíamos por nossos destinos. Seríamos jogados em um monturo para
sermos corroídos pela ferrugem? Quem sabe iríamos para uma funilaria para
sermos derretidos e transformados em outros objetos? Não havia nenhuma certeza,
só dúvidas e indiferença. Os pré – agora já rapazes – adquiriam novos hábitos,
chegando cada dia mais tarde em casa e nem sempre juntos. Pareciam não se
importar com meu destino nem dos demais. Temi que a ociosidade me levasse
rapidamente à decrepitude. Por sorte e como estávamos em bom estado, a família,
com alto espírito de solidariedade resolveu doar a maior parte dos penicos a
instituições de caritativas, com exceção de uns dois ou três que ficariam para
atender emergências. A mim coube prestar serviços em uma creche da periferia,
como peniquinho educativo.
Terminei
bem, né?
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