A. J. de O. Monteiro
Acordei
cedo e a lua, como nos versos de Orestes Barbosa, penetrando pelos buracos do
teto de zinco do barraco ainda salpicava de estrelas o nosso chão. Toinha,
desdenhando a poesia, ainda ressonava solenemente. Respirei aliviado pois hoje
é domingo e não terei que suportar o cotidiano da fábrica: a estridente sirene,
os gritos do chefe de turma que parecia implicar só comigo. Tolerava os erros e
falhas dos outros, me parecia, os meus não!
Ah!
Mas é domingo e vou realizar a surpresa que venho preparando há tempos para
minha família, principalmente para a Toinha, coitada, que nunca reclama de nada,
lava, passa, arruma a casa, toma conta das crianças e ainda faz bicos como
diarista em casas de famílias ricas. De nada reclama: “É tudo vontade de Deus”,
diz sempre, com o conformismo que só pobre tem. Faz milagres no fogão ao
preparar a pouca e pobre comida de todos os dias. É arroz, feijão, farinha e,
às vezes, raras vezes, uns retalhos de carne que consigo comprar. Mas sempre
arruma um jeito de fazer diferente, como, não sei.
Com
muito cuidado para não acordá-la, fui até à gaveta da penteadeira e lá do fundo
puxei o pacotinho com o dinheiro que vinha juntando há algum tempo. Um
troquinho daqui, uma sobrinha dalí e mais algum que ganhei no jogo de bozó nos
intervalos do almoço lá no pátio da fábrica. Muitas vezes pensei em fazer uma
retirada para uns traguinhos a mais lá na birosca da esquina com meus
companheiros de trabalho e desencantos, mas resisti. A galinha desse domingo era
a meta. É a surpresa que preparei para a Toinha que, sem reclamar, mas
insinuando, sempre falava sobre uma tal galinha à cabidela que sua mãe
preparava lá no interior. Contei mais uma vez os trocados e disse para mim
mesmo: Hoje dá! E fui, pé-ante-pé para não acordar ninguém e ser obrigado a explicar porque, num domingo de
folga estava saindo tão cedo, Não queria estragar a surpresa. Abri a porta e
sai rumo à feirinha em busca da felicidade em forma de galinha.
A
feira não era muito perto mas saindo àquela hora chegaria com tempo para
escolher uma boa ave, foi o que pensei.
No
caminho entre o barraco e a feirinha tem uma pequena mata, um lugar mal
cheiroso onde os moradores das redondezas, despejam o lixo doméstico e até
animais mortos. Mas nem percebi o mau cheiro, só pensava na galinha da Toinha e
das crianças também, é claro. E foi aí que pensei: vida de pobre é mesmo
sofrida, prá comer uma galinha, uma mísera galinha, uma vez na vida é um
sacrifício e um acontecimento. Rico não, come o que quer, no dia que quer, nos
melhores restaurantes, sem se preocupar com o dia seguinte... Não sou estudado,
mal terminei o primário lá no interior com professora leiga, mas às vezes penso
que tem alguma coisa errada nesse mundo, uns com tanto e outros com tão pouco...
Quando falo isso a Toinha logo reclama: Num blasfema, homem! Foi assim que Deus
dispôs. Ele criou os ricos e os pobres, os ricos prá gozar na vida e os pobres
prá gozar no paraíso. É a vontade de Deus!
Distraído
nesses pensamentos ruins, quando dei por mim já estava na feirinha com seus
sons de todos os dias: Os feirantes anunciando suas mercadorias aos gritos que
se misturavam com guinchos dos porcos, os berros dos carneiros e bodes e o
cacarejar das aves, uma zoeira só.
Lá
no final da feira ficavam as gaiolas das aves e para lá me dirigi. Meu coração
pareceu querer saltar da boca quando de longe mesmo avistei a ave, bonitona, crista
levantada e coxas grossas, parecendo uma dessas cantoras baianas. E como estava
sozinha numa gaiola, não resisti à piadinha infame: “vou comer a Ivonete Sem Galo”.
Dirigi-me ao proprietário da belezura e perguntei: ô conterrâneo, quanto custa?
Ele respondeu, contei os trocados, recontei e não dava. Tentei pechinchar mas o
proprietário não cedeu um centavinho sequer. Então apelei: Tenho tanto, o que é
que dá prá levar com essa porcaria? E ele me apresentou uma galinhazinha que
estava meio encolhidinha no canto de outra gaiola parecendo querer esconder-se
talvez por medo da panela, talvez por vergonha de sua feiura. Pensei, pensei e
disse: num tem tu vai tu mesmo. Conformado, paguei, pendurei a mirrada ave
pelos pés e fui. O sol já estava alto. Apressei o passo pois ainda tinha que
passar na birosca prá comprar uma “meiota” de pinga prá aperitivo e como a
galinha parecia já um pouco passada na idade tinha que ir logo pro fogo pois
não temos panela de pressão.
No
caminho de volta novamente me perco pensando. Pensando na alegria da minha
família ao me ver chegar com uma galinha para o almoço de domingo. Já vejo a
cara do Chiquinho gritando: “a asa é minha”! E eu: a asa pode ser sua, mas a moela
é minha! E a Socorrinho: “o pescoço é meu”! E eu: o pescoço pode ser seu, mas a
moela é minha! E a Mariazinha: “a coxa é minha”! e eu: a coxa pode ser sua, mas
a moela é minha! Já a Toinha, como sempre não ia exigir nada, ia ficar com o que
lhe sobrasse, não cobrava nada. “Fico com o que Deus quiser”, certamente iria dizer.
E
assim, perdido nesses pensamentos nem notei que já estava na mata, nem o mau
cheiro senti, assim como só percebi aquele sujeito com uma arma na mão quando
ele gritou: Passa a penosa ô proleta! Mas..., tentei falar. Nem mais nem menos,
passa a penosa, onde já se viu proletário comer galinha. Passa a ave ou te
passo chumbo. Entreguei, sentei e chorei, chorei como nunca antes havia
chorado. Lá se vai a asa do Chiquinho, o pescoço da Socorrinho, a coxa da
Mariazinha e a minha moela. Lá se vai o sonho de um proletário de comer uma
galinha à cabidela, num domingo qualquer.
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