segunda-feira, 9 de junho de 2014

NÓS NA CABEÇA*




Daniel Cariello**
                
                   Venho, por meio desta, protestar contra o fim de um dos mais importantes ritos de passagem da infância. Uma prova de habilidade e paciência que foi posta para escanteio em nome da praticidade e da velocidade destes nossos dias.
                Falo daquele momento mágico, por volta dos 4 ou 5 anos de idade, no qual aprendíamos a amarrar sozinhos o cadarço dos tênis. Algo que está sendo limado da vida de nossos meninos à medida que a antiga arte de atar um cordão vem sendo substituída pelo monótono e simplório abrir e fechar de um velcro.
                Lembro-me da primeira vez que fui bem-sucedido na tarefa, com meu calçado Bamba azul surrado. Aconteceu durante o recreio de um dia chuvoso do 1º jardim. Sem possibilidade de sairmos da sala e com a guerra de massinhas voadoras definitivamente banida pela tia Floriza, só nos restou ocupar o tempo treinando laços. O Alex foi o primeiro a conseguir, seguido do Marcelo e de mim.
                Naquele instante, senti-me um super-herói. Depois de ser capaz de cuidar dos meus cadarços, acreditava-me apto a qualquer desafio mais simples, como pular do telhado da escola dando piruetas. Chamei o Alex para me acompanhar nessa nova aventura, mas a tia Floriza disse para a gente ficar bem quietinho ali e parar de inventar moda. Tudo bem, eu estava mesmo tão empolgado com a descoberta de uma nova competência que continuei treinando e saí fazendo um laço em cima do outro. Depois, tive de passar a tesoura e cortar tudo, pois não havia quem desatasse aquele nó cego.
                Voltando ao velcro, eu o considero um dos símbolos destes tempos em que os infantes estão perdendo contato com atividades que desenvolvem a inteligência e as habilidades psicomotoras. Amarrar o cadarço é apenas um exemplo, mas a lista ainda contém outras, como soltar pipa ou rodar pião.
                A fim de comprovar minha teoria, outro dia pedi a uma menina para dar um laço no cordão de um tênis, e ela não conseguiu. Desolado, decidi fazer um filme para mostrar a outras pessoas e levantar uma discussão sobre os rumos da infância nos dias atuais. Enquanto ela se enrolava com o longo fio, peguei meu smartphone e abri o novo aplicativo de vídeo que tinha acabado de baixar. Cliquei em um ícone, pressionei outro, tirei uma selfie minha sem querer, mas não houve jeito de registrar o momento.
                Irritada, a criança se levantou e pegou o telefone da minha mão. Tentei tomar o aparelho de volta, mas, antes de conseguir reagir, ela fez um filme meu, aplicou um efeito, incluiu uma trilha sonora e o enviou a todos os contatos da minha agenda.
                O pior nem foi isso. O pior foi que, nessa ocasião, ela bateu meu recorde no Angry Birds. Já faz uma semana que tento, mas não consigo superar a marca da menina.
*Originalmente publicado em Veja Brasília de 04/06/2014.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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