A. J. de O. Monteiro
Nelson
Rodrigues, dramaturgo e cronista do cotidiano do futebol carioca, criou um
personagem – o Sobrenatural de Almeida – ao qual atribuía influência nos gols e
vitórias do Fluminense. Quando o Fluminense não vencia, Nelson costumava dizer
que Sobrenatural de Almeida o enganara... Mas, coisas acontecem na vida que só
podem ser atribuídas ao sobrenatural, seja ele de Almeida, da Silva ou de
Oliveira e algo assim aconteceu comigo...
Cheguei ao
bar, ainda cedo para um sábado, portanto o ambiente ainda estava vazio. Pedi
uma cerveja e fiquei a divagar na espera dos meus amigos dos papos sabatinos,
quando alguém que passava entre as mesas falou: - “bom dia, Telércio”. Só então
percebi que não estava sozinho. Em uma mesa, a minha direita, havia um rapaz,
também tomando cerveja e, igualmente, com ares meditativos. O nome mencionado
pelo passante – Telércio – imediatamente trouxe a minha memória um incidente
ocorrido comigo, no aeroporto de Teresina, quando uma simpática, mas
impertinente velhinha tomou-me por algum jogador de futebol e me pediu um
autógrafo que seria para seu neto, Telercinho, segundo ela, muito tímido. Ao
descobrir que eu não era jogador, tão pouco famoso, passou a me hostilizar.
Os bares são
lugares ideais para se conversar, mesmo com estranhos. Normalmente a conversa
se inicia com comentários sobre o tempo: se está chovendo, se está calor... E
assim aconteceu. Falamos sobre a brisa agradável que naquele momento embalava
as folhas dos oitizeiros em torno do bar... Daí ele levantou-se veio a mim, e
pediu licença para sentar-se, com o que concordei. Após três o quatro cervejas
compartilhadas, já éramos velhos conhecidos. A certa altura do bate papo, não
segurando mais a curiosidade, resolvi tocar no incidente do aeroporto. Ele
calou e percebi certo desconforto, o que me fez imediatamente, mudar de
assunto, mas ele me interrompeu e disse com a voz quase embargada: - “Creio se
tratar de minha avó Emerecilda, essas coisas eram típicas dela. Fui criado por
ela após uma série de infortúnios se abaterem sobre mim – não só sobre mim, mas
sobre ela também. Fui criado por minha avó desde os seis anos de idade e ela
foi responsável por tudo de bom e de ruim na minha vida, desde então. Morávamos
em povoado perdido no meio do Maranhão – o lugar é pequeno e pobre até hoje,
imagine há vinte e cinco anos... Aos quatro anos perdi meu pai, único filho
dela, baleado acidentalmente por um companheiro de caçada, dizem. Dois anos
depois, minha mãe casou com o causador da morte de meu pai e se mudou para São
Paulo, segundo dizem. Isso causou certa desconfiança sobre a acidentalidade da
morte, mas, naquela localidade sem nada, tudo se perde no tempo, até a
desconfiança. Minha avó atribui tudo ao destino e proibiu tocar-se no assunto
em minha presença...
—
Nesse ponto parou e respirou profundamente... Temi que não fosse continuar.
Tomou um grande gole de cerveja, novamente respirou e prosseguiu:
...Minha avó era muito religiosa
e cria que qualquer ato contrário aos ensinamentos da religião merecia castigo
severo. Na sua concepção, o pecado devia ser purgado em vida para evitar
castigo mais severo na eternidade. A cada peraltice minha, mesmo aquelas
próprias da idade, me punia com o maior rigor. Às vezes me fazia ajoelhar, por
horas, sobre caroços de milho, com a cara voltada para a parede. Por vezes,
quando precisava sair para cumprir alguma obrigação, para que não tomasse a rua
em sua ausência, me vestia com roupas de menina, o que me causava revolta e
dor. Mas não tinha forças para enfrentar a velha...
—
Àquela altura da narrativa, já me sentia angustiado, com sentimento de culpa
por levar o pobre rapaz a reviver fatos tão marcantemente tristes da sua vida,
mas procurei não deixar transparecer ao Telercinho, digo, Telércio. Minha
preocupação, aquela altura era que ele não interrompesse a narrativa, pois,
apesar da angústia, minha curiosidade só aumentava. ... Tomou mais um gole e continuou:
...A qualquer esboço de
resistência, dizia: - ‘Se não te castigar agora, irás queimar no fogo eterno’...
Por volta dos dez anos de idade passei a sentir impulsos estranhos. Sentia
compulsão por matar filhotes de gatos, e da compulsão ao ato não demorou.
Matava os bichinhos por enforcamento. Saia à noite, escondido, depois que ela
pegava no sono levando um barbante no bolso, já com o laço feito... De certa
feita cheguei a enforcar uma ninhada inteira. Os filhotes nem tinham aberto os
olhos... Ainda rastejavam. Após o ato era tomado por tamanha crise de
arrependimento que me fazia chorar convulsivamente e prometer, em nome de todos
os santos, não voltar a cometer esse repulsivo ritual. Prometia mas não cumpria
e sempre voltava à prática. Até que um dia fui flagrado em pleno ato por um
vigia noturno, que levou ao conhecimento de minha avó. Dessa vez o castigo foi
terrível: uma surra com cipó de tamarindo que me deixou todo lanhado, além de
penitência de rezar o terço, por trinta dias, ajoelhado sobre caroços de milho.
Determinou também que, durante esses trinta dias, usasse roupas de menina,
exceto para ir à escola ou à missa, se o padre viesse ao povoado, em desobriga.
Os castigos surtiram efeito e parei com a repulsiva prática, não por ter
superado a compulsão, mas por medo do castigo que, em caso de novo flagrante,
seriam, certamente, bem mais severos...
—
Fez uma pequena pausa para pedir outra cerveja, pois meu copo já estava vazio
há um bom tempo. Agora quem parecia impaciente era ele. Mal tomou um gole para
voltar ao relato.
...Certa noite, estávamos na sala
da casa; minha avó entretida com sua radionovela e eu, à janela, observava os
garotos da rua brincando sob a copa do tamarineiro. Ficava apenas na vontade de
participar, pois minha avó dizia que os garotos não tinham regras e seriam má
influência para a formação do meu caráter. Dentro de mim havia uma confusão de
sentimentos: de raiva, de culpa e, principalmente de humilhação pelo castigo de
ser obrigado a usar roupas de menina. Isso me doía mais que as cipoadas e os
caroços de milho nos joelhos...
—
Seus olhos marejaram, respirou fundo e continuou:
... De repente um barulho e um
grito de minha avó: - “Desgraçados! Quebraram meu rádio, seus moleques mal
educados, sem pais”. Virei-me assustado e vi o rádio espatifado no chão,
chiando, e uma pedra de bom tamanho ao seu lado. Minha avó, praguejando,
armou-se com um cabo de vassoura e partiu pra cima dos garotos, escorraçando os
moleques que apenas protestavam gritando não terem feito nada. Vi que não foram
eles, mas de nada adiantaria tentar convencê-la. Os meninos se foram e ela
voltou. Tentou remontar o rádio, sem sucesso. – “Amanhã vou cobrar dos pais
desses atentados e não quero conserto, quero um novo, da loja”!...
—
Parou e, calado, ficou me observando. Tive a desagradável sensação de que ele
vasculhava minha mente. Disse-lhe, quase ordenando: continue, continue! – do
que me desculpei. Ele sorriu enigmático e deu sequência:
... Nos dias que se seguiram as
‘coisas’ se amiudaram e diversificaram. Caiam do teto da casa, os objetos mais
estranhos: copos se espatifavam no chão; a comida posta à mesa sumia das
travessas e depois caiam sobre as cabeças dos presentes (curiosos), como
chuva... As plantas do bem cuidado jardim murcharam completamente, pareciam ter
morrido e isso deprimiu minha avó, que tinha verdadeiro amor pelas plantas.
Usava suas flores para ornar seu penteado, quando saia. O pânico tomou conta de
minha avó. A mim, não, até me divertia com as reações dela e das pessoas – até
desconhecidos passaram a frequentar nossa casa depois que a notícia se
espalhou. A casa ficava o dia todo rodeada de curiosos. Alguns amigos e amigas
de vovó vinham com intuito de ajudar, mas outros vinham apenas para conhecer a
casa mal assombrada e a ‘bruxa da curva’ (a casa ficava em curva de estrada e
por isso passaram a tratar minha avó dessa maneira). Aqueles que se atreviam
transpor o umbral da porta recebiam cusparadas no rosto e recuavam apavorados,
persignando-se e invocando a proteção de todos os santos. Vendo a aflição de
vovó, um generoso vizinho ofereceu sua casa em hospedagem para nós, até ‘que as
coisas cessassem’. Disse ele: - ‘Assim como começou, isso vai parar’.
Agradecida, minha avó aceitou e nos mudamos para a casa do vizinho levando
apenas algumas peças de roupa e objetos de uso pessoal – para passar pouco
tempo. Logo após nos instalarmos, tudo recomeçou: pedras, vidros e cusparadas
caiam do teto forrado da casa (o teto da nossa não era forrado). Minha avó
ficou bastante ‘vexada’ com aquilo, agradeceu ao prestimoso vizinho e
retornamos à nossa casa com a ‘carga que nos cabia’, disse ela. O vizinho,
visivelmente assustado e temeroso por si e por sua família não insistiu, apenas
lamentou não ter sido como ele pensava. Outras boas pessoas queriam ajudar,
mesmo de outras maneiras. Um grupo de senhoras religiosas organizou uma
procissão, partindo da capelinha do povoado, que ficava num outeiro, na
continuação da curva da estrada... A procissão aproximava-se e já se ouvia os
cânticos e ladainhas entoadas pelas participantes. À frente, carregado por
homens, um andor com a imagem do padroeiro do lugar, ornada com belas flores.
Ao entrarem na casa, uma pedra, do tamanho de uma laranja atingiu a imagem do
padroeiro, fazendo-a em pedaços. Houve correria, gritos, choros e desmaios... A
procissão se dispersou sem nem mesmo recolher os cacos da imagem...
—
Percebi um leve e sarcástico sorriso em seu rosto, mas não ousei perguntar a
razão. Só queria que ele continuasse e foi o que ele fez.
...Avisado por viajantes o padre
da freguesia veio ao povoado, em desobriga extraordinária. Rezou, rezou e
rezou, sem resultado. Trouxeram um curandeiro famoso, de uma cidade próxima que
prometeu enxotar a entidade ruim que se alojara na casa. Pediu um relho virgem
e saiu distribuindo chibatadas a torto e a direita, por todos os cantos, ‘xingando’
pelos mais horríveis palavrões, a tal entidade, mas nada mudou. O padre relatou
ao bispo que veio da sede do bispado para, segundo ele, benzer a casa e
livrar-nos do castigo. Muniu-se do asperges e saiu aspergindo água benta por
toda a casa e também em nós. De nada adiantou e as ‘coisas’ continuaram. A
notícia do fenômeno chegou à Capital, sede do arcebispado, de onde o arcebispo,
mais informado a respeito desses fenômenos, noticiou ao Vaticano. O arcebispo era influente e convenceu a Santa
Sé a enviar um exorcista, visto que o caso vinha desafiando todos os recursos
religiosos locais. Num dia chuvoso e frio – lembro bem – estacionou, em frente
à nossa casa, um carro preto, com logotipo do arcebispado e dele desceram três
pessoas: o motorista, e dois padres (identifiquei pelas vestes). Um dos padres
era bem alto, loiro e vermelhão; o outro, um tipo comum, bem do fenótipo da
região (depois fiquei sabendo que o galego era alemão e o outro, intérprete).
Minha avó logo me mandou para o quarto, pois não gostava que assistisse as
conversas dos adultos sobre essa ‘coisa’ – Achava que poderia me causar
transtornos mentais – mas, logo depois ela mesma foi buscar-me, dizendo que o
padre queria me ver. Entrei na sala, levado por ela, intimidado com aquelas
presenças solene. O vermelhão, percebendo minha retração, disse ao intérprete
para me tranquilizar. Falou em sua língua natal, o alemão, que entendi
perfeitamente e respondi prontamente que estava tudo bem, que já não tinha medo.
Minha avó e o intérprete ficaram atônitos, o alemão, não. Tirou de sua enorme
pasta um livro de capa preta onde se lia, em letras douradas: RITUALE ROMANUM.
Abriu o livro em uma página marcada com fita vermelha, impôs sua mão direita
sobre minha cabeça e entoou a oração de exorcismo do Papa Leão XIII. Entoou-a
em Latim que entendi sem dificuldade, como se fosse em Português – confesso que
certas passagens da oração me assustaram. Ao fim da récita, retirou a mão de
minha cabeça e só então pude olhar para ele. O alemão estava mais vermelho
ainda e ensopado de suor. Em torno dele se formara uma enorme poça. Olhou em
meus olhos e disse, em sua língua: - ‘Você está em paz, pequenino’! Respondi: -
‘Ich danke lhnen’1. Voltou-se então para o intérprete e ordenou: - ‘Diga
à avó do púbere para, de agora em diante dar-lhe muito amor e carinho.
Reprovando-o, quando necessário, mas nada de castigos excessivamente severos ou
aviltantes’...
—
Dessa vez o interrompi com um gesto e chamei o garçom para pedir mais uma cerveja
e, também, para recompor meu raciocínio, pois ele vinha falando num ritmo muito
intenso, quase aos borbotões. Tomamos nossos goles e ele voltou ao relato, mais
calmamente.
... Daquele dia em diante nada de
anormal aconteceu. O nosso relacionamento se tornou harmonioso, ao contrário do
relacionamento com a comunidade que passou a nos evitar e, alguns, até mesmo
nos hostilizavam. Ficamos isolados ao ponto d’ela decidir deixar o povoado.
Vendeu a casa (que soube depois, foi demolida) e mudamos pra cá. Com as pensões
de meu pai e de meu avô que eram parcimoniosamente administradas por ela, que
também fazia e vendia doces e bolos muito apreciados, vivemos razoavelmente e
conclui todo o ciclo de estudos sem dificuldades”.
—
Como me pareceu haver encerrado a narrativa, perguntei: - ‘E d. Emerecilda,
como está’?
—
Faleceu ontem.
Um
frio percorreu minha espinha... Ontem? Coincidência...?
Telércio
chamou o garçom, pagou sua parte da despesa e estendeu a mão dizendo: - “Auf wiedersehen”2.
Não entendendo o que ele falou, respondi com um até a próxima. Novamente sorriu
enigmático e se foi...
Fiquei
meditando sobre o estranho encontro até a chegada dos meus amigos de bar e de
copo e o sábado seguiu sei curso normal. Não lhes contei nada, pois sei que não
acreditariam, exceto, talvez, o Mago Manu que diria ter feito tudo diferente e
resolvido o caso bem mais rápido.
*Título inspirado no conto “A
Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó desalmada, de Gabriel
Garcia Marques.
1Muito obrigado.
2Adeus.
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