domingo, 12 de junho de 2016

ENCAIXANDO SONHOS*


Daniel Cariello**
             
                       Louise está brincando no quarto. Filha única, ao menos por enquanto, acostumou-se a se divertir-se sozinha, embora prefira acompanhada. Muitas vezes participo de seus jogos, seja desenhando, lendo histórias ou organizando o casamento da Polly, com a presença certa das Ever After High, personagens de uma realidade a que somente mães e pais de meninas têm acesso. Mas também gosto de apenas observá-la mergulhada em seu universo infantil, sem ela perceber que estou ali, enquanto rememoro a criança que um dia fui.
               Da porta, vejo-a sentada no chão, distraindo-se com seu supermercado de Lego. Um Playmobil enchia o carrinho com miniaturas de cenouras, laranjas, garrafas de leite e caixas de cereal. Estava prestes a passar pelo caixa e pagar com o dinheiro que sua mão não podia segurar, pois é representante de um mundo de encaixes diferentes. Apesar do contratempo, realizou as compras, embarcou na carruagem da Cinderela e finalmente foi para a casa, preparar o jantar para seus iguais.
               Nunca brinquei muito com Playmobil. Se bem me lembro, só tive um, encontrado na areia de um parquinho perto de casa. Cuidei dele como um filho, até o dia em que se revoltou, perdeu os cabelos (e revelou sua cabeça oca) e desapareceu nesse mundão. Nunca mais nos vimos.
               Mas o Lego esteve presente em boa parte da minha infância. Como muitas crianças, tive uma caixa cheia de peças, com as quais podia dar uma de Deus e montar qualquer coisa que minha imaginação vislumbrasse e minha habilidade permitisse. A imaginação ia longe, mas a habilidade nunca a acompanhava, e eu só era capaz de fabricar torres, carros e aviões. Pra aliviar a frustração, estes sobrevoavam e bombardeavam de maneira implacável as belas construções dos meus irmãos, exatamente como eu via nos filmes americanos da Sessão da Tarde.
               Louise não faz aviões, está mais preocupada em organizar seu supermercado e construir casas e a mobília do interior, como sofás, cadeiras e mesas, para depois desmontar tudo e iniciar uma nova empreitada, geralmente parecida com a precedente. As crianças devem seguir sempre os mesmos padrões nas suas montagens de Lego, reflito, recordando minhas preferências e observando as de minha filha. Por que não ousamos e inventamos coisas mirabolantes, me pergunto, concluindo em seguida que são apenas peças plásticas de encaixe, não dá mesmo pra bolar muita coisa com elas.
               Nesse instante, Louise me vê parado em frente à porta.
— Pai, quer brincar comigo?
— Quero. O que vamos fazer, uma nova casa?
— Não, um teletransporte! Pra visitar a família e os amigos a qualquer hora.
— Um teletransporte?
— É, pai. Se a gente correr, dá pra terminar até a hora do jantar. Vem!
               O Daniel de 42 anos pensou em dizer que não dava, mas a essa altura o Daniel de 6 anos já estava sentado no chão, pedindo à Louise que ajudasse a realizar um reator nuclear com uma pilha pequena e um pedaço de barbante, enquanto ambos expulsavam o adulto do quarto. Afinal, aquele assunto era sério demais pra gente grande atrapalhar.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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