Daniel Cariello**
Louise
está brincando no quarto. Filha única, ao menos por enquanto, acostumou-se a se
divertir-se sozinha, embora prefira acompanhada. Muitas vezes participo de seus
jogos, seja desenhando, lendo histórias ou organizando o casamento da Polly,
com a presença certa das Ever After High, personagens de uma realidade a que
somente mães e pais de meninas têm acesso. Mas também gosto de apenas
observá-la mergulhada em seu universo infantil, sem ela perceber que estou ali,
enquanto rememoro a criança que um dia fui.
Da
porta, vejo-a sentada no chão, distraindo-se com seu supermercado de Lego. Um
Playmobil enchia o carrinho com miniaturas de cenouras, laranjas, garrafas de
leite e caixas de cereal. Estava prestes a passar pelo caixa e pagar com o
dinheiro que sua mão não podia segurar, pois é representante de um mundo de
encaixes diferentes. Apesar do contratempo, realizou as compras, embarcou na
carruagem da Cinderela e finalmente foi para a casa, preparar o jantar para
seus iguais.
Nunca
brinquei muito com Playmobil. Se bem me lembro, só tive um, encontrado na areia
de um parquinho perto de casa. Cuidei dele como um filho, até o dia em que se
revoltou, perdeu os cabelos (e revelou sua cabeça oca) e desapareceu nesse
mundão. Nunca mais nos vimos.
Mas
o Lego esteve presente em boa parte da minha infância. Como muitas crianças,
tive uma caixa cheia de peças, com as quais podia dar uma de Deus e montar
qualquer coisa que minha imaginação vislumbrasse e minha habilidade permitisse.
A imaginação ia longe, mas a habilidade nunca a acompanhava, e eu só era capaz
de fabricar torres, carros e aviões. Pra aliviar a frustração, estes
sobrevoavam e bombardeavam de maneira implacável as belas construções dos meus
irmãos, exatamente como eu via nos filmes americanos da Sessão da Tarde.
Louise
não faz aviões, está mais preocupada em organizar seu supermercado e construir
casas e a mobília do interior, como sofás, cadeiras e mesas, para depois
desmontar tudo e iniciar uma nova empreitada, geralmente parecida com a
precedente. As crianças devem seguir sempre os mesmos padrões nas suas
montagens de Lego, reflito, recordando minhas preferências e observando as de
minha filha. Por que não ousamos e inventamos coisas mirabolantes, me pergunto,
concluindo em seguida que são apenas peças plásticas de encaixe, não dá mesmo
pra bolar muita coisa com elas.
Nesse
instante, Louise me vê parado em frente à porta.
— Pai, quer brincar comigo?
— Quero. O que vamos fazer, uma
nova casa?
— Não, um teletransporte! Pra
visitar a família e os amigos a qualquer hora.
— Um teletransporte?
— É, pai. Se a gente correr, dá
pra terminar até a hora do jantar. Vem!
O
Daniel de 42 anos pensou em dizer que não dava, mas a essa altura o Daniel de 6
anos já estava sentado no chão, pedindo à Louise que ajudasse a realizar um
reator nuclear com uma pilha pequena e um pedaço de barbante, enquanto ambos
expulsavam o adulto do quarto. Afinal, aquele assunto era sério demais pra
gente grande atrapalhar.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br
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