terça-feira, 15 de agosto de 2017

TERRITÓRIO DA INFÂNCIA


Ananda Sampaio

                Tenho um avô que veio do Pernambuco para tentar vida no Piauí. Uma bisavó paraibana que cresceu órfã morando de favor, um bisavô misterioso vindo do oriente médio que assim como apareceu, desapareceu um dia. Li, em algum lugar, que a primeira sina do nordestino é não saber se vai ou se fica. Tentar a vida longe e um dia retornar à terra natal com a vida ganha. Coisa que quase nunca acontece. Muitos dos que vão não voltam mais. E muitos dos que ficam, sonham com a vida que nunca terão.
                Viver é uma perseguição sem fim. E para quem nasce em terras áridas como a nossa a perseguição já está no DNA. Meu pai perseguia o Banco do Brasil, e assim íamos para onde nos destinassem. E quis Deus, que um desses destinos fosse União, por puro acaso, pois o alvo inicial era mesmo Teresina. Chegados de mala e cuia, de cara fomos matriculadas, eu e minha irmã, na Escola Patronato Maria Narciso. Eu estava com seis anos e, embora conhecesse algumas letras, não sabia ler. A cidade que morávamos anteriormente não possuía a alfabetização.
                Em União descobri o casamento das letras e que a partir desses encontros nascem as palavras. E assim fui decodificando o mundo e reduzindo minha angústia. Percebi que não era tão difícil quanto imaginei. Nas ruas de União deslizei sobre minha bicicleta lilás com cestinha a caminho da escola. Rezei e cantei os hinos antes de entrar para a sala de aula. Participei da dança do côco vestida de menino porque nenhum dos pares disponíveis me agradava.
                Sem saber, eu construí em União o arcabouço do meu paraíso perdido que é a infância. E como bem diz Lygia Fagundes Telles, eu tenho escrito, desde então, na tentativa vã de resgatá-lo. E mesmo sabendo que nunca conseguirei, que o máximo que posso alcançar, são as minhas mãos tocando as paredes dos prédios que ainda restam, não direi que é um exercício inglório.
                Às vezes não gosto de retornar a União. O peito aperta, a minha finitude se escancara. E eu, boquiaberta, sinto perante os olhos a minha memória desfragmentar-se. Vejo minhas lembranças serem contestadas pelas proporções infantis que não correspondem mais a minha realidade adulta e tão mais exata.
                Foi no Casarão da Mãe Quelé que vi a vida passar sem medo. Eu não tinha medo. A vida se deslanchava exatamente igual a mim quando descia aquele morro de bicicleta. O vento no rosto, o frio na barriga. A sensação tão certeira de que o mundo estava a minha disposição e ser feliz não gerava nenhum esforço. Eu era feliz sobre o muro, sobre a árvore, sentada a janela ou comendo o doce da Rosa.
                Em União a felicidade era sempre servida à mesa. Nessa cidade eu encontrei abrigo no abraço de uma senhorinha cega, distribuí gargalhadas na AABB, eu vi meus pais pela primeira vez como pessoas de carne e tão vulneráveis. Em União nunca estou com fome. Nessa pequena urbe o amor é servido aos tachos.

Um comentário:

manoel andante disse...

Maravilha, essa crônica que é parte do amor e das lembranças de uma maravilhosa cronista, minha sobrinha neta adotiva, Ananda Sampaio. Perfeita, querida!