A. J. de O. Monteiro
Era
uma manhã chuvosa, daquelas que favorecem a preguiça e o devaneio. E assim
estava eu quando de repente uma voz ecoou: “Venha encontrar-me no abrigo da
Praça do Liceu”! Como estava sozinho assustei-me, mas prossegui com meus
devaneios. Até que novamente a mesma voz se fez ouvir, mais alta e imperativa:
“O que estás esperando? Pega o carro e vem me encontrar no abrigo da Praça”! Só
então, para meu alívio, reconheci a voz do Mago Manu – ele não usa celular,
prefere a telepatia... Como não domino a técnica, de imediato pus-me a caminho
da velha Praça de tantas e tão boas recordações das minhas infância e
adolescência.
Chovia
mais forte quando cheguei, mas não me detive. Saí do carro e me dirigi ao
abrigo – uma construção estranha que pouco tem a ver com a Praça. É, na
verdade, um bar e lanchonete protegido por uma laje que se projeta em dois
sentidos sobre a construção central, apoiada em pilotis irregulares. Ao redor
do bar e ainda sob laje tem-se mesas e cadeiras para atender a clientela. É
difícil de explicar. Ao aproximar-me, Avistei o Mago com as duas mãos sobre a
empunhadura da bengala vietnamita e o queixo apoiado sobre as mãos. Seu olhar
fitava um ponto indistinto. Parecia ignorar o ambiente. Pensei: “algo grave
aconteceu”. Em cima da mesa repousava uma bonita caixa de madeira escura,
parecendo ébano. Como ele não percebeu minha aproximação pigarreei alto para
alertá-lo. Ele olhou pra mim e com o queixo, apontou uma cadeira.
— Chamei-o para dar-lhe parte de
um assunto muito sério e grave: vou confidenciar-lhe um ato que pratiquei há
mais de cinquenta anos... Um ato indigno de mim e do qual até hoje me
envergonho e que, também até hoje não partilhei com ninguém...
— Mago – interrompi-o – não
precisa...
— Sim, é preciso, mais que
preciso, é necessário. Tenho que dividir com alguém esse peso que carrego; essa
nódoa a macular minha vida até então irreprovável e ninguém mais que você,
Barretinho, merece minha confiança.
Em
ato contínuo tomou nas mãos a caixa, destravou o fecho dourado, levantou a
tampa e virou-a para mim. A caixa, forrada com veludo azul, continha um
cachimbo; um belíssimo cachimbo de madeira entre o vermelho e o vinho, com um
anel dourado envolvendo a cabeça, e outro, também dourado, protegendo o encaixe
da piteira.
— Mago – falei – não me venha
dizer que voltou a fumar e, agora, cachimbo... Estou pasmo...
— Não seja idiota! Não voltei a
fumar e não voltarei! Sou homem de palavra!
Pegou
o cachimbo com as mãos trêmulas e o passou a mim, e apontando o anel da cabeça
disse: Leia! Peguei o cachimbo, aproximei-o dos olhos e lá, no anel, estava gravado
em itálico: Fidel Castro Ruiz...
— Uma homenagem ao Comandante,
Mago?
— Não! Este cachimbo pertenceu a
Fidel e eu o roubei... Pronto, falei! Esse é o ato do qual tanto me envergonho
e que tanto tem atormentado minha consciência...
— Juro, Mago, não estou
entendendo, me explique...
— Se você não me interromper
mais, explico... Após Fidel descer com suas tropas de Sierra Maestra e tomar
Havana, enxotando o ditador Batista, decidi por conta e risco próprios,
fazer-lhe uma visita e ver como estava conduzindo o processo revolucionário na
Ilha e, se necessário, dar-lhe alguns conselhos. Temia que ele e seus
comandados, por tão jovens que eram se perdessem na condução dessa tarefa de
refazer um País tão sofrido e explorado há tantos e tantos anos.
— Assim, Mago, sem convite...