sábado, 23 de setembro de 2017

O CACHIMBO DE FIDEL.


A. J. de O. Monteiro

                Era uma manhã chuvosa, daquelas que favorecem a preguiça e o devaneio. E assim estava eu quando de repente uma voz ecoou: “Venha encontrar-me no abrigo da Praça do Liceu”! Como estava sozinho assustei-me, mas prossegui com meus devaneios. Até que novamente a mesma voz se fez ouvir, mais alta e imperativa: “O que estás esperando? Pega o carro e vem me encontrar no abrigo da Praça”! Só então, para meu alívio, reconheci a voz do Mago Manu – ele não usa celular, prefere a telepatia... Como não domino a técnica, de imediato pus-me a caminho da velha Praça de tantas e tão boas recordações das minhas infância e adolescência.
                Chovia mais forte quando cheguei, mas não me detive. Saí do carro e me dirigi ao abrigo – uma construção estranha que pouco tem a ver com a Praça. É, na verdade, um bar e lanchonete protegido por uma laje que se projeta em dois sentidos sobre a construção central, apoiada em pilotis irregulares. Ao redor do bar e ainda sob laje tem-se mesas e cadeiras para atender a clientela. É difícil de explicar. Ao aproximar-me, Avistei o Mago com as duas mãos sobre a empunhadura da bengala vietnamita e o queixo apoiado sobre as mãos. Seu olhar fitava um ponto indistinto. Parecia ignorar o ambiente. Pensei: “algo grave aconteceu”. Em cima da mesa repousava uma bonita caixa de madeira escura, parecendo ébano. Como ele não percebeu minha aproximação pigarreei alto para alertá-lo. Ele olhou pra mim e com o queixo, apontou uma cadeira.
— Chamei-o para dar-lhe parte de um assunto muito sério e grave: vou confidenciar-lhe um ato que pratiquei há mais de cinquenta anos... Um ato indigno de mim e do qual até hoje me envergonho e que, também até hoje não partilhei com ninguém...
— Mago – interrompi-o – não precisa...
— Sim, é preciso, mais que preciso, é necessário. Tenho que dividir com alguém esse peso que carrego; essa nódoa a macular minha vida até então irreprovável e ninguém mais que você, Barretinho, merece minha confiança.
                Em ato contínuo tomou nas mãos a caixa, destravou o fecho dourado, levantou a tampa e virou-a para mim. A caixa, forrada com veludo azul, continha um cachimbo; um belíssimo cachimbo de madeira entre o vermelho e o vinho, com um anel dourado envolvendo a cabeça, e outro, também dourado, protegendo o encaixe da piteira.  
— Mago – falei – não me venha dizer que voltou a fumar e, agora, cachimbo... Estou pasmo...
— Não seja idiota! Não voltei a fumar e não voltarei! Sou homem de palavra!
                Pegou o cachimbo com as mãos trêmulas e o passou a mim, e apontando o anel da cabeça disse: Leia! Peguei o cachimbo, aproximei-o dos olhos e lá, no anel, estava gravado em itálico: Fidel Castro Ruiz...
— Uma homenagem ao Comandante, Mago?
— Não! Este cachimbo pertenceu a Fidel e eu o roubei... Pronto, falei! Esse é o ato do qual tanto me envergonho e que tanto tem atormentado minha consciência...
— Juro, Mago, não estou entendendo, me explique...
— Se você não me interromper mais, explico... Após Fidel descer com suas tropas de Sierra Maestra e tomar Havana, enxotando o ditador Batista, decidi por conta e risco próprios, fazer-lhe uma visita e ver como estava conduzindo o processo revolucionário na Ilha e, se necessário, dar-lhe alguns conselhos. Temia que ele e seus comandados, por tão jovens que eram se perdessem na condução dessa tarefa de refazer um País tão sofrido e explorado há tantos e tantos anos.
— Assim, Mago, sem convite...

terça-feira, 19 de setembro de 2017

UMA PALESTRA AGRADÁVEL *



Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira

                Esbelta, corada, vestida com calça comprida de veludo e blusa de seda colorida, calçada com sapatos salto alto, parecia estar indo para uma festa, ou para um shopping frequentado por pessoas abastadas, não fosse uma pequena foice que trazia presa em sua cintura.
                Quem diria, até a antiga senhora aderiu à modernidade, e, não mais assusta os viventes, que lhe aceitam como inevitável e necessária para que alcancem uma nova vida, mais cheia de alegrias, de amor, de beleza, que a vivida neste planeta, com passagens dolorosas, muito trabalho, suor e sangue... Castigado por querer, o primeiro de sua espécie, criado por Deus, ouvindo a Serpente, ser maior que o Criador!
                Ao passar por aquela faceirice, eis que ela me chama e exclama: “O garoto de quem Deus se apiedou e não me deixou leva-lo , quando não tinha , ainda, sete anos! ”Ao que retruquei”: Dona Morte, como à senhora está bonita”! “E ela:” Meu filho, nem todos me acham bonita, o que vês em mim de bonito? “Falei – lhe:” A tua proximidade com ELE, a tua bondade comigo, as tuas lembranças sem mágoas, a tua missão, que me levará para junto de quem amo, a tua paciência, em me deixar mais tempo com minha mulher, meus filhos, meus amigos!”“.
                “Incrível” ela tornou, “deparo – me com o resultado de um milagre, que se lembra de tudo, que ama o dono da vida e da morte, e que, mais, ainda, vive lépido e lampeiro e me acha bonita!” Pois bem, vou contar – te uma coisa: não sou feia, não sou bonita, não sou como me pintam... Não tenho idade, e apareço do jeito que me imaginam, uns, com medo, outros, sem me compreenderem, alguns, sem se importarem comigo... “Tu me achaste bonita, e, se eu não fosse a Morte e tu um simples mortal, até que daríamos um par legal...” “Vou seguindo meu destino, mais tarde, sem dúvida, nos encontraremos”... Fui!
                (Um esclarecimento: A referência ao que me aconteceu aos 7 anos se deve ao fato de que, em São João do Piauí, o Rio Piauí, apenas com um filete d´água, por falta de chuvas, formou um balseiro em suas margens, onde as crianças brincavam, e se jogavam na pouca água que restava, num banho gostoso. Quando vinham as chuvas, os ribeirinhos queimavam o balseiro , mas o fogo, como nos monturos, era ateado por baixo. Pois bem, atearam fogo ao balseiro, mas não avisaram às crianças e eu pulei , sem saber que já estava ardendo, e, arrancado por meu pai, minhas pernas não tinham mais pele. Fui desenganado pelos médicos, mas, no dia de Corpus Christi, quando passava Sua procissão, pedi-lhe que não me deixasse morrer, e, agora, estou contando essa história, testemunhando um milagre acontecido comigo! Ela será recontada, tim-tim por tim-tim, em outra ocasião...)

*Editada.