Daniel Cariello*
A Beth Carvalho partiu há duas semanas e eu nunca tive a
oportunidade de agradecê-la. É que foi ela quem me trouxe para o carnaval de
rua. Se hoje sou um confesso apreciador da festa de Momo, espero ansiosamente
os 4 dias de blocos e emendo um depois do outro, como se não houvesse ressaca
nesse mundo, a verdade é que nem sempre foi assim.
Quando era criança, em Brasília, não via graça nos bailes
de salões de festa dos clubes. Na adolescência, aproveitava do feriado para
ensaiar com minha banda de rock Sendero Luminoso, cuja ambicionada revolução
musical nunca foi levada à cabo. E dos carnavais do começo da minha vida adulta
eu até gostava, mas porque juntava amigos em um carro e partia para as praias
que me faziam falta no Planalto Central.
Mas aí eu viajei para o Rio de Janeiro no início dos anos
2000, em uma época em que a cidade fazia as pazes com sua maior festa popular.
Muitos blocos estavam surgindo, trazendo novas músicas, resgatando antigas
marchinhas e enchendo outra vez as ruas.
Nesse carnaval, por algum motivo, amigos e família também
estavam no Rio. Meu plano para fugir da folia era simples: eu iria sempre
acompanhar o grupo que ficasse na praia. Principalmente porque meu amigo
Serginho e eu disputávamos diariamente uma nova etapa do Campeonato Mundial de
Jacaré, do qual éramos os únicos competidores (e eu sempre saía campeão, apesar
do Serginho jurar que era ele). Pra mim, mais valia um caixote em Ipanema que
uma cabrocha na avenida.
Meu objetivo de passar ao largo da festa acabou indo por
água abaixo quando não tive como recusar o pedido da minha mãe para
acompanhá-la ao Cordão do Bola Preta. Meu pai não poderia ir, então fui
escalado para encarar ao lado de uma carioca foliã o mais antigo, tradicional e
cheio bloco do Rio de Janeiro.
Chegamos ao centro da cidade, onde o Bola Preta deveria
estar, mas não vimos sinal dele. “Deve ter acabado”, pensei com satisfação,
abrindo uma lata de cerveja e planejando retornar à praia a tempo do Mundial de
Jacaré. Mas logo percebemos um barulho, em princípio ao longe, que crescia e se
aproximava de nós.
De repente, uma multidão vira uma esquina e entra na
avenida onde estávamos. A horda avançava em nossa direção, acompanhada de um
carro de som em cima do qual um grupo tocava sucessos do carnaval. O cantor
encerrou a música e anunciou a chegada da convidada especial: “agora o Cordão
do Bola Preta tem o prazer e a honra de receber a rainha Beth Carvalho”.
O lugar pegou fogo. Recordei-me da criança avessa aos
bailes que eu era e identifiquei ali o momento oportuno para correr daquele
tsunami humano, cada vez mais próximo. Mas minha mãe pensou exatamente o
contrário e me puxou pela mão e atravessou a turba, até chegar perto do trio
elétrico: “é a Beth!”.
Aí a Beth subiu no palco e cantou o hino do Bola Preta,
“quem não chora não mama / segura, meu bem, a chupeta”. E puxou “a chuva cai lá
fora, você vai se molhar / já lhe pedi: não vá embora, espere o tempo
melhorar”. E arrebatou a todos com “vou festejar, vou festejar o teu sofrer, o
teu penar / você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão”.
Quando percebi, eu também cantava junto. Minha mãe
cantava junto. Todas as centenas de milhares de pessoas cantávamos juntos “ô,
coisinha tão bonitinha do pai / ô, coisinha tão bonitinha do pai”. E nenhum de
nós nos importávamos mais com o aperto, com o calor, com o suor, porque
sentíamos estar no lugar certo e na hora certa. Sem saber, Beth Carvalho
comandava a cerimônia que me transformou de pagão em novo folião. Seus hinos e
a cerveja que voava das latas e caía sobre mim me batizaram definitivamente no
carnaval. Por isso, obrigado, Beth!
Depois ainda deu tempo de voltar à
praia e destruir o Serginho, em mais uma etapa do Campeonato Mundial de Jacaré.
*Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br,
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