terça-feira, 23 de julho de 2019

QUE FRIA MADRUGADA FOI AQUELA



A. J. de O. Monteiro
                A previsão do tempo indicava a madrugada mais fria do ano em Brasília, e foi. E foi naquela madrugada fria, extremamente fria que acordei com o estridente choro da Bil. Levantei-me de um salto e corri para o quarto da pequena. O quarto estava iluminado pela luz amarela de seu abajur e pude vê-la de joelhos sacudindo o gradil do berço. A boca escancarada quase me permitia ver as amígdalas. Tive que gritar para ser ouvido, tão alto era o choro.
                — O que houve filhinha?
                Ao que ela respondeu entre soluços:
                — Pepeta (traduzindo: chupeta)
                Nesse momento a mãe chega ao quarto, ainda meio aturdida, pergunta:
                — Por que está chorando filhinha? Onde está dodói?
                Respondi por ela:
                — A chupeta! Perdeu novamente a chupeta!
                — Vamos procurar Bil, não chore mais, vamos achá-la
                Mas não achamos...
                Enquanto a mãe tentava acalmá-la, eu, seguindo todo o protocolo de busca à chupetas, revirei o colchão do berço, sacudi o cobertor e, já apoiado por uma lanterna, revistei todos os cantos do quarto, despejei a caixa de brinquedos e nada. Fui aos demais cômodos do apartamento: os outros quartos, corredor, sala, banheiros, cozinha... E nada. Lembrei-me então que a mãe costumava ter uma chupeta reserva guardada na geladeira... Não, não tinha. A mãe então me informou que a chupeta perdida agora já era a reserva... A mãe já esgotara todos os recursos de acalanto de que dispunha: Cantou as musiquinhas infantis; contou historinhas; ligou o televisor, mas àquela hora a programação nada tinha de atraente a crianças... E o volume do choro aumentando. Ela não calava, apenas, entre um soluço e outro, gritava: PE-PE-TA! Já temia que os vizinhos ligassem para o Conselho Tutelar denunciando-nos por maus tratos a menor... “Vai comprar outra chupeta” – gritou a mãe em desespero – “e vai logo”!
                A madrugada estava fria, muito fria, já disse. Agasalhei-me, desci, liguei o fiel fusquinha e dirigi-me para o HFA (Hospital das Forças Armadas), que fica próximo e mantinha uma farmácia 24 horas aberta ao público em geral, mas não tinha a chupeta da Bil, que só aceitava uma tal chupeta ortodôntica com a ponta da tetina achatada, cuja propaganda dizia proteger o palato e os dentes – propaganda enganosa, pois os dentinhos de leite da Bil já se insinuavam.
                Resignado voltei para o carro e rumei para a W-3 Sul, dizendo para mim mesmo: ah, lá vai ter! Mas não tinha! Percorri a via da 516 até a 502, deixando para trás vitrines e placas luminosas, mas nenhuma farmácia de plantão. Confesso que na 502, me senti tentado a dar uma paradinha n’O Paisano*, mas resisti, afinal a chupeta era prioridade, portanto dali rumei para a CLS-302 Sul, também conhecida pela população como rua das farmácias, devido ao grande número de estabelecimentos do gênero. Já sem muita convicção fui e lá encontrei farmácias abertas e logo na primeira encontrei a “ortodôntica” da Bil – comprei dez e, aliviado, voltei pra casa. Já nem frio sentia mais!
                Ao me ver com a sacolinha na mão, Bil estancou o choro, pegou a chupeta que lhe estendi, sorriu, colocou-a na boca, fechou os olhos, recostou a cabeça no ombro da mãe e dormiu... Já eu não dormi. Acompanhei o lento passar das horas daquela madrugada fria, ouvindo músicas com fones de ouvido para não lhe atrapalhar o sono. E assim fiquei até a hora de ir trabalhar com toda a disposição do mundo.
                Algum tempo depois estávamos nós – eu e ela – sentados no chão da sala ouvindo músicas e discutindo sobre samambaias choronas, peixinhos saltadores e outros assuntos de alto magistério, quando Bil postou-se ante mim e falou gravemente:
                — Pai, vamos fazer um trato...? Se você parar de fumar, paro de usar chupeta!
                — Topo – respondi sem pestanejar.
                Incontinente ela tirou a chupeta da boca, atirou-a pela janela da sala e desde então nunca mais tive de largar-me pelas ruas de Brasílias em madrugadas frias para comprar chupetas. Ela cumpriu sua parte no trato, enquanto eu não. Que vergonha!

*Restaurante de cozinha italiana, mas que nas madrugadas dos finais de semana, oferecia grande variedade de caldos para aqueles(as) que resolviam esticar o repiau.

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