terça-feira, 2 de julho de 2019

QUEM É VOCÊ NA FILA DO PÃO?



Daniel Cariello*

                Aos 7 anos, me senti livre pela primeira vez: em férias familiares em Nova Almeida, pequena cidade litorânea do Espírito Santo, fui autorizado por meus pais a ir comprar pão sozinho. A padaria era na casa vizinha à que havíamos alugado, não precisava nem atravessar a rua. Mas eu fiquei muito orgulhoso da minha autonomia.
                Nessas mesmas férias, ganhei um puçá do meu avô paterno. Passei a viagem inteira colocando iscas e o lançando ao mar (o puçá, não meu avô, que de todo modo não precisava de incentivo para se jogar nas águas capixabas). Ao puxar de volta, às vezes a armadilha trazia um siri preso em sua rede.
                Minha avó se apressava em recolher e atirar o animal em um balde, enquanto decidia sua sorte: os diminutos voltavam ao mar, os maiores viravam jantar. Na minha cabeça, entre as idas à padaria e a pesca de siri, era eu quem garantia a alimentação da família naquelas férias.
— Vó, posso ficar com a puã? - perguntava, querendo faturar a melhor parte do siri.
— Pode, Daniel.
                Há alguns dias, quase quarenta anos depois do episódio em Nova Almeida, foi a vez da minha filha Louise soltar seu grito de independência, na ilha francesa de Porquerolles, onde passávamos férias. "Amanhã, eu vou comprar pão sozinha", reivindicou.
                Aos 9 anos, Louise ainda não havia passado pelo rito. Em uma cidade grande como o Rio de Janeiro, onde vivemos, a liberdade de uma criança acaba sendo limitada. Mas na pequena Porquerolles, sem carros nas ruas, ela podia pleitear a saída solitária. E assim o fez.
— Sozinha? Ok, tá legal. Mas anota aí o endereço da casa, o meu telefone, o da sua mãe, o da Chloé, do Marc, da...
— Pai, dá um tempo. A padaria é pertinho, só virar a esquina. Não vou me perder.
— Jura?
— Pai...
— Tá bom, tá bom, vai lá. Aqui o dinheiro. Aproveita e traz um croissant pra mim.
— Pai?
— O quê?
— Posso ficar com o troco?
— E pra que você quer o troco?
— Ué, pai, agora que já consegui minha liberdade, tenho que começar a pensar no meu futuro.
                Louise sempre foi mais esperta que eu. E além do mais, não gosta de siri.

*Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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