A. J. de O. Monteiro
Ouça
bem, minha senhora, não nasci na rua, nasci numa casa e, de uma ninhada de dez,
fui escolhida para ali permanecer. Meus irmãos e irmãs tão logo desmamaram
foram doados e minha mãe, já velha, não ficou comigo por muito tempo. Partiu deixando para mim o lugar no coração
daqueles que a amaram e dela cuidaram até o fim... Naquela casa fui criada com
todos os mimos e os mesmos cuidados dedicados a ela. Ouso dizer que me tornei a
alegria de todos, principalmente dos dois filhotes humanos – um macho e uma
fêmea, como eu. E como todo filhote adoravam brincar. Era uma farra!
Vivia
feliz, minha senhora: comia bem; brincava o dia todo; recebia tratamento
veterinário, inclusive para combater os insaciáveis carrapatos e pulgas. Não
havia do que me queixar... Até um canto só meu tinha, para dormir com conforto
e higiene. O ambiente era lavado diariamente e o forro que me protegia da
aspereza do chão era trocado semanalmente... Como vê, minha senhora, não tinha
do que queixar, muito pelo contrário...
Mas,
minha senhora, fui crescendo e passei a sentir faltar-me algo que só compreendi o que era aos poucos, quando, ouvindo os latidos vindos da rua comecei sentir
falta dos meus nove irmãos e irmãs, dos quais, como lhe disse fui apartada tão
cedo. Ouvia os latidos e ganidos e sentia como um chamamento deles, também
sentindo saudades de mim. Saudade entristece, mas meus amigos humanos não
compreendendo o motivo da minha tristeza, meu excessivo recolhimento e até
minha resistência as brincadeiras com os filhotes, julgaram-me doente e me
levaram ao Veterinário. Não gostava disso: era um vira prum lado; vira pro
outro; apalpa aqui; apalpa ali, além das doloridas picadas das vacinas e da
ingesta forçada dos horríveis vermífugos. Entendia os cuidados, mas não
gostava. Toda vez que ouvia a palavra veterinário procurava me esconder... Além
disso, na clínica, muitos dos meus, de variadas estirpes, ficavam engaiolados, o
que me causava grande angústia e tristeza.
Em
casa, principalmente à noite, os apelos vindos das ruas só aumentavam a saudade
de meus irmãos e a vontade reencontrá-los se tornava premente e isso meus
queridos amigos cuidadores pareciam não compreender. Aumentavam os mimos, os
cuidados, levavam-me a passear, mas nada me tirava daquele banzo. Por gratidão, mas só pro gratidão, ainda brincava com os
filhotes de duas patas. À aproximação deles, latia e abanava o rabo, mas sem o
vigor de antes. Ah, a saudade! – “A saudade é o pior tormento/É pior do que o
esquecimento/É pior do que se entrevar...”*
Ah,
minha senhora, não me julgues ingrata, pois não sou. Certo dia, ao saírem
para trabalhar, levando os pequenos para a escola, esqueceram o portão aberto e
eu, com a cautela que o medo do desconhecido recomenda, transpus aquele limite
e ganhei a rua sabendo o que queria, mas não o que me esperava. Saí a toda
velocidade para não dar chance ao arrependimento e na expectativa de
encontra-los – meus irmãos – logo adiante, pois tinha certeza que os latidos e
ganidos que ouvia tão perto, eram deles. De repente beeeeee. Estanquei e vi, a
poucos centímetros da minha cabeça aquele monstro de ferro parado. Pálido,
tremendo e com as pernas bambas, voltei para a calçada, olhando de esguelha
para o humano dentro do monstro berrando em minha direção. Mas, minha senhora, incidentes
como esses chamam a atenção, e, tanto quanto os humanos nós, caninos somos
curiosos e logo me vi cercado por um grande número de semelhantes – digo
semelhantes por sermos da mesma espécie, mas havia cães de todos os tamanhos e
de variadas pelagens tanto em tamanho e espessura quanto em coloração. Ansioso
procurei identificar entre eles um dos meus irmãos ou, até mesmo, um parente
mais distante, mas nenhum deles apresentava nossas características familiares.
Resolvi
seguir com eles e foi o melhor que fiz. Ali, minha senhora, começava uma nova
vida para mim! A vida de um cão de rua! A vida de um vira-latas! Mas não pense,
minha senhora, que a vida de um vira-latas é fácil. Não, não é! São muitos os
perigos, principalmente para um cão criado em uma casa, cercado de todos os
cuidados e carinho. Há risco de atropelamento, de agressões de humanos(?) e até
de outros cachorros de maus bofes. Meus novos companheiros submeteram-me a um
treinamento intensivo de como reagir às situações de perigo que a vida da rua propicia.
Do treinamento consta como atravessar ruas, pressentir cães agressivos e,
principalmente como escapar dos terríveis homens da carrocinha. Também fazia
parte do treinamento a busca pelo que comer e beber e essa foi a parte mais
dura desse início de nova vida... Com paladar e estomago habituados a ração de
primeira qualidade e água pura e fresquinha, ao comer as “iguarias” que a rua
oferece sentia fortes enjoos e ânsia de vômitos, mas, a turma tinha seus
“macetes”, conhecia alguns restaurantes da redondeza onde funcionários de bom
coração separavam sobras de comidas minimamente aceitáveis e as dispunham em
vasilhas nas calçadas. Isso facilitou minha adaptação à nova dieta. Pois é,
minha senhora, dizem que a vida ensina viver e com ela e com meus companheiros,
aprendi.
Nosso
dia a dia, minha senhora, era assim: Logo cedo, acordados pelos primeiros raios
de sol e pelo crescente dos ruídos da cidade, levantávamos, sacudíamos o
orvalho da madrugada acumulado em nossos pelos, fazíamos o alongamento de nossas
articulações e partíamos para iniciar a cotidiana luta pela sobrevivência. Saíamos todos juntos, mas logo nos separávamos
em pequenos grupos para não assustar as pessoas que àquela hora deixavam suas
casas rumo ao trabalho, também na luta pela sobrevivência. Essa estratégia
facilitava mais rapidamente a localização de comida e o grupo que encontrava o
repasto primeiro, emitia latidos codificados – para não alertar estranhos –
avisando aos demais do achado. A área de busca era limitada, pois sabíamos que
quanto maior a distância, mais difícil é a comunicação.
E
assim, minha senhora, passávamos o dia: perambulando, comendo e descansando
quando o corpo pedia à sombra de uma árvore e felizmente nesse quesito –
árvores – nossa cidade é bastante generosa. Quando a noite se aproximava,
iniciávamos o retorno para o abrigo de sempre onde deitávamos juntinhos para
compartilhar o calor de nossos corpos então exaustos.
Como
já disse, minha senhora, não sou a ingrata. Apreciei muito seus cuidados, seus
carinho e acolhimento, mas é hora de partir, preciso cumprir minhas missões –
agora tenho duas: a primeira a senhora já sabe que é encontrar meus irmãos e
irmãs; a segunda assumi agora, por questão de dever e consiste em cuidar dos
mais velhos do nosso grupo. Aqueles que num momento crucial da minha então
jovem vida me acolheram e me ensinaram todas as coisas que um cão de rua
precisa saber. Hoje estão velhos e, alguns, doentes, já sentindo dificuldades
em andar e sem os reflexos necessários para escapar dos perigos, e com o faro
diminuído, não conseguem localizar comida como antes. Precisam de mim. Por
favor, minha senhora, deixe-me ir.
x.x.x.x.x.x.x
Ela
abriu o portão e foi comigo até a calçada. Dessa vez não corri. Dei alguns
passos, olhei pra trás e respondi: Meu nome? Ah, minha senhora todos os cães de
rua têm o mesmo nome: vira-latas, mas quando com fome, atendem por qualquer
nome! Pude ver seus olhos marejados e pensei em voltar, mas segui em frente. O chamado
das ruas foi mais forte...
*Versos de Pedaço de Mim, de
Chico Buarque (sei que exagerei, mas não resisti)
Obs.: esta crônica “testemunho” é
uma homenagem a todas as pessoas (destacando Rosangela e Simone) e entidades
(destacando a APIPA – Associação Piauiense de Proteção e Amor aos Animais), que
dedicam tempo, recursos e amor aos animais abandonados e/ou maltratados.

Um comentário:
Texto emocionante, fiquei travada em um misto de sentimentos. Parabéns ao autor, sempre se superando.
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