Daniel Cariello*
Logo
cedo, a faxineira conta das ameaças da milícia a seu filho, que se viu obrigado
a fechar o pequeno negócio que mantinha, no bairro distante onde vivem. E
relata a rotina de desconfiança e medo e violência e silêncio imposta por essa milícia,
que agora cobra pedágio do seu amigo taxista, com quem ela vem trabalhar na
Zona Sul todos os dias.
Na
tela do celular, mensagens e informações trazem notícias dos acontecimentos
mais recentes, de treta e tiro e desamparo e desespero, dessas coisas que
passaram a ser normais noticiar. E atestam um pouco mais da nova realidade do
país, que de tão insana parece distópica, mas é muito verídica.
Enquanto
passo o café na cozinha, o podcast em francês anuncia que a situação na Europa
não anda boa e as expectativas para o resto do mundo também são desanimadoras.
E traz novidades da loucura generalizada de intimidação e provocação e disputa
e guerra que está acontecendo em toda parte.
Com
tudo isso na cabeça, desço para a rua da vila onde moro. Fecho a porta da casa,
respiro fundo e acerto o passo. Mas interrompo a ação ao ver, ao longe, uma
criança e um senhor, talvez seu avô, abrirem o portão da vila. A menina está
vestida de bailarina, é certamente aluna da escola de dança que funciona na
última casa do conjunto.
Ela
solta a mão do avô e se põe a saltar no caminho entre o portão e a escola,
exibindo seus jetés e pliés e coupés e balancés, cheios de graça e leveza. Paro
tudo para observar a garota, que passa por mim piruetando, toda de rosa,
enchendo a rua e a manhã de poesia.
Continuo
meu trajeto, fecho o portão da vila e ganho a rua cheia de carro e buzina e
gente e pressa. Passo em frente ao bar e vejo na televisão a notícia da mais
nova barbaridade do momento. Os dois clientes matinais maldizem o governante
com todos os insultos dos quais se lembram.
Recuo
alguns passos, estico o pescoço e dou uma última olhada na vila. Vejo a pequena
bailarina entrar na escola, enquanto seu sossegado avô ainda não chegou ao meio
do caminho. Coloco os fones, escolho um dos arabesques de Debussy e saio para o
dia, com um sorriso no rosto, apesar de vocês.
* Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br
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