sábado, 12 de outubro de 2019

A MORTE DO ZÉ PEQUENO



A. J. de O. Monteiro

                Começava minhas atividades etílicas naquela manhã de domingo, como sempre, sozinho. A família saíra para suas atividades: igreja uns, clube outros. Tudo normal: passarinhos cantando, roncos distantes de motores que se acentuam com o silêncio da cidade que ainda não acordara completamente. Nas manhãs de domingo, as pessoas, parece, falam mais baixo e se movem lentamente talvez em respeito ao dia ou pela ressaca das atividades sabatinas. Ligo a caixa de som e o dispositivo USB começa a reproduzir “Funeral de um lavrador”, na voz do Chico. Despejo a cerveja na taça, acendo um cigarro e, de repente um calafrio percorre minha espinha dorsal... Epa! Será que estou sendo atacado por alguma virose? Logo hoje, domingo. Zica, dengue, chycungunya, que estão na moda? Vade retro! Foi rápido. Tomo mais um gole e volto-me, institivamente para o lado do portão e vejo, estupefato, aproximar-se de mim, o Zé Pequeno totalmente desnudo! Nu como veio ao mundo. Entre pasmo e assustado ante a visão grotesca – ZP (assim o tratávamos no boteco), não atingia mais que 1,20 metro de altura, pernas arqueadas, tronco largo e uma enorme barriga. A cabeçorra começava diretamente no tronco; não tinha pescoço visível – reagi com indignação:
                — O que é isso ZP? Que ousadia e sem-vergonhice é essa? Como se atreve entrar em minha casa sem roupas? Me respeite, respeite minha casa, minha família. Ponha-se daqui pra fora antes que o enxote a pontapés.
                  — Calma, doutor, só o senhor pode me ver, ninguém mais...
              — Claro, interrompi-o, no momento estou só em casa, mas minha família chegará a qual quer momento ou mesmo uma visita inesperada... Você enlouqueceu ZP? Sempre respeitador e agora me aparece assim...
                   — Não doutor, não enlouqueci, apenas morri...
                — Além de me afrontar ainda vem com deboche... Não sei onde estou com a cabeça que não lhe dou uns safanões...
                  — Não doutor, não é afronta nem deboche, morri mesmo e vim lhe avisar...
                Minha paciência estava no limite mesmo sendo o ZP, um sujeitinho respeitador e prestativo que frequentava o mesmo boteco, fazendo pequenos favores aos clientes: ZP, vai ali comprar cigarros; ZP, vai lá em casa levar este dinheiro que minha mulher está pedindo... E ele atendia a todos com presteza.  Com as gorjetas que lhe dávamos tomava suas doses de cachaça até encostar-se num canto e dormir. Não perturbava ninguém e quando acordava ia pra sua casa levar alguma comida para a mulher e filhos. Além das gorjetas, sempre comprávamos uma “quentinha” pra ele levar. ZP era casado e tinha dois filhos pequenos. Mas, como disse, sentindo-me afrontado, levantei-me e dei-lhe um forte empurrão para que entendesse que falava a sério. Não sei o que aconteceu, só sei que minhas mãos não tocaram em nada sólido, o que me fez perder o equilíbrio e esborrachar-me no chão. Lentamente levantei-me pensando: “estou tendo uma alucinação alcoólica”. ZP continuava em pé, no mesmo lugar e falou:
                — Não disse, doutor, não sou mais gente de carne e osso... sou só esprito...
                — Que merda é essa ZP? Estou te vendo, estou falando contigo... Que merda é essa?
                — Pois é, doutor, morri mesmo e de morte morrida como diz o povo.
             — E como não fiquei sabendo? Ninguém me avisou e por que só eu posso vê-lo como mesmo disseste.
                Num é só o senhor não, o Domingão, meu vizinho que o senhor conhece, é outro que pode me ver.
                Nem ele me avisou.
                — É que ele andou muito ocupado com a papelada: cartório, cemitério, velório, essas coisas todas de quando se morre, o senhor sabe como é, né?
                É, sei... Me conte como foi isso, estou curioso
.
                — Bem, doutor, foi da noite de sexta para a madrugado de sábado, não sei ao certo... Fiquei no boteco de “seu” Ozório até a beirada da noite de sexta, quando tomei o rumo de casa passando na padaria para comprar, com os trocados que ganhei, umas coisinhas para a Tônia e os meninos. Cansado e ainda meio zonzo da cachaça, entreguei as coisas para a Tônia e me joguei na cama. Ah, doutor, quando acordei – se é que posso dizer que acordei – tava tudo escuro e rodando, nem meu corpo eu sentia, pelo que pensei comigo mesmo: “que diacho de cachaça foi aquela que o Ozório me vendeu”? “Nunca tive ressaca de cachaça e agora Isso”. De repente o dia foi clareando e só então reparei que estava sentado em cima de uma das pás do ventilador de teto – aquele que o senhor me deu, lembra? – Aí pensei de novo: “num é ressaca não, é pesadelo e dos brabos”. Olhei pra baixo e vi a Tônia que roncava pesado e perguntei pra mim mesmo: “que diacho é isso”? “Eu aqui em cima e lá embaixo, na cama, dormindo... Eu não tenho irmão gêmeo”. “Que diacho é isso?”, repeti. A claridade finalmente entrou totalmente no quarto pelos tabiques da janela e pelas frestas do telhado acordando a mulher. Como de costume ela me sacudiu e gritou: “levanta homi, vai cuidar da vida”... E eu, nada. Nem me aluí. Do jeito que estava fiquei. Ela insistiu no empurrão e nos gritos e nada, até que resolveu me virar e viu – e eu também vi lá de cima – meus olhos esbugalhados e minha boca aberta. Ela gritou: “meu Deus, o ZP parece que tá morto, está frio que nem gelo”! E danou-se a pular, e a gritar, e a chorar, tanto e tão alto que as crianças acordaram e foram para o quarto e, mesmo sem entender o que acontecia começaram também a chorar e a gritar. E foi tão forte a gritaria que toda a vizinhança correu pro barraco saber o que estava acontecendo pois nunca tinha acontecido nada igual em nossa casa, até nossas brigas de casal num eram ouvidas além das paredes da casinha. Quando Domingão chegou, também atraído pela gritaria, olhou no meu rumo e, experiente que era, logo percebeu o ocorrido. Levantou os braços e com voz firme, falou: “gente, tá sem jeito, o ZP morreu, já era”! Imagina, doutor, a minha cara de cachorro quando cai do caminhão de mudança. “Raimundinha – disse Domingão voltando-se para sua esposa – Leva D. Tônia e as crianças para casa, dê-lhes o que comer e o que mais precisarem. E a Senhora, D. Tônia, não se preocupe com nada, deixe que vamos cuidar de tudo”.
                Nesse momento pedi-lhe que parasse um pouco, acendi um cigarro, virei o copo de cerveja enquanto procurava dar sentido nessa história maluca. Fiz um gesto e ele prosseguiu:
              — E ele providenciou tudo mesmo: atestado e certidão de óbito, cova, velório... Nesse tempo, enquanto o Domingão desenrolava a papelada, fui até sua casa dar uma espiada na Tônia e nas crianças.  Ah, doutor, que raiva que senti. Lá encontrei o desgraçado do Pedro Bico Doce, cunhado do Domingão, cheio de cuidados pros lados da Tônia. Aquele safado! Já tinha reparado que o bandido olhava pra ela cheio de maldades, mas nunca liguei muito pois confio na minha mulher, uma mulher séria que não dava trela pra ninguém. Ah, doutor, mas agora não, agora ele passou das medidas se aproveitando do sofrer de uma mulher enviuvada agorinha. Parti pra cima do infeliz feito bicho ferido, urrando e dando-lhe murros e o cachorro nem tchã. Nada ouvia, nada sentia, meus golpes nem cócegas lhe faziam. Nisso o Domingão entra anunciando: “o rabecão chegou, vamos levar o ZP para a funerária municipal, onde vão preparar o corpo para o velório e enterro”. Ah, doutor, essa eu não ia perder de jeito nenhum, tinha que acompanhar tudo tintim por tintim lá na funerária. Sentei na capota do rabecão e fui. Sabe, doutor, quando pensava na morte e esse era pensamento raro em mim, uma coisa, só uma coisa me preocupava além da Tônia e das crianças: quem vai me vestir? Suava frio só de pensar em estranhos virando e revirando meu corpo, talvez fazendo piadas sobre mim. Ah, ficava com raiva só de pensar. Lá chegando, levaram-me naquele bandejão de aço para uma sala que tinha escrito acima da porta a palavra TANATORIA, que nem sei o que significa e, agora, pouco me interessa saber. Só posso lhe dizer uma coisa: nada do que tinha medo aconteceu. Os funcionários fizeram seus serviços sem qualquer comentário sobre meu corpo. Enquanto me arrumavam falaram de futebol, de cinema, novela, cantaram e assoviaram, só isso e fiquei aliviado. Quando terminaram – até que fiquei arrumadinho – abriram a porta e gritaram pra alguém de fora: “Tá pronto, terminamos, podem vir pegar o pacote”! Só isso me desgostou, agora virei um pacote, um simples pacote” ...
                Pedi-lhe que parasse novamente e novamente abri uma cerveja, enchi a taça que tomei duma virada, acendi outro cigarro, enquanto pensava: “que bobagem essa do ZP. Que importa o que os outros vão falar ou pensar sobre ele, afinal nada vai mudar mesmo”. Pedi que continuasse.
                — No salão de velório tudo igual: velas acesas, choro já contido da Tônia – Domingão e D. Raimundinha acharam melhor não trazer as crianças, no que concordei – o olhar contrito de alguns que se aproximavam do caixão doado pela prefeitura... E o safado do Chico Bico Doce ali, não saia do lado da Tônia. Ah, doutor, se pudesse levava esse safado comigo. Pra não me aborrecer mais, resolvi dar uma volta pelo pátio arborizado da funerária onde um pequeno grupo de vizinhos e amigos do boteco conversavam alegremente sobre tudo, até sobre mim, contando passagens engraçadas dos meus porres, quando um retardatário que soubera do ocorrido há poucos se aproxima e pergunta: “morreu de quê”? Libório Copo Furado, o piadista da turma respondeu: “não sei se foi de pedrada de baladeira ou engasgado com alpiste, só sei, como tão dizendo, que morreu como um passarinho”. Piadinha tão antiga quanto infame, mas todos riram, inclusive eu... Bem doutor, já vou simbora, sua família já deve estar chegando e não quero atrapalhar seu almoço de domingo. Só lhe peço uma coisa: toda vez que for ao boteco tomar umas com a turma, antes do primeiro gole, erga um brinde pra esse ZP que sempre muito lhe considerou...
                A figura do ZP foi se fragmentando até sumir totalmente. Tomei dois copos seguidos, afirmando pra mim mesmo: “Só pode ser alucinação alcoólica, amanhã mesmo vou procurar um psiquiatra e se precisar parar de beber, paro”! Mas, por via das dúvidas, resolvi ligar para do Domingão:
                — Domingão, meu amigo, me dê notícias do ZP;
                — Morreu ontem, doutor, não soube?
                Persignei-me, ergui um brinde ao ZP, acendi outro cigarro e fui conferir a quantidade de cervejas no freezer, pois com certeza hoje só durmo bêbado.

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