Daniel Cariello*
Na
casa dos meu avós maternos sempre tinha mate em garrafa de Coca na geladeira
que dava choque. Eu só me lembrava disso quando entrava na cozinha sedento e
ainda molhado da piscina e abria a porta da velha geladeira. O primeiro choque
era a descarga elétrica do eletrodoméstico enferrujado, que sabe se lá como
nunca matou ninguém. O segundo, ainda pior, era abrir uma garrafa de vidro de
Coca-Cola, encher um grande copo e descobrir no primeiro gole que ela havia
sido preenchida com mate caseiro. E sem açúcar.
Não
tinha muito refrigerante e sorvete na casa dos meus avós maternos (ao contrário
dos paternos, que colaboraram com a alegria do doutor Nicodemos, o dentista da
família). Tudo lá era dietético, que na época não tinha gosto de nada,
contrariamente a hoje, quando já sabemos ser ruim. Minha avó era diabética e a
única garrafa de Coca verdadeira ficava guardada para garantir a ela uma dose
de glicose de emergência, necessária com certa regularidade.
Mas
cachorro tinha, e muito, para a alegria dos netos. No mínimo uns quatro. E às
vezes passava de dez, quando uma das cadelas dava cria. E tinha passarinho
também, canário preso em gaiola, mas meu avô acabou doando para um viveiro, não
sei se por cansaço ou piedade. Eu preferiria que tivessem sido soltos.
Futebol
embaixo da mangueira do jardim, amora comida no próprio pé, toda a coleção de
livros do Monteiro Lobato, revistas proibidas para menores cujo esconderijo
descobri, tudo isso tinha, e ainda ópera no volume máximo no quarto, televisão
ligada o dia inteiro na sala, rádio tocando os sucessos da FM na cozinha e uma
gritaria do meu avô e da minha avó por todos os cômodos, porque a casa era
enorme e os dois não ouviam muito bem.
Mas
nem tudo ali era lúdico. Eu morria de medo de duas coisas: da madrugada, a mais
escura que me lembro, e de uma antiga roca de fiar, na qual eu não tocava de
jeito nenhum, com receio de espetar meu dedo e dormir cem anos. Na roca nem
tinha agulha, mas eu preferia não arriscar, pois havia magia naquela casa,
talvez levada pela vidente que vivia por lá, uma cartomante amiga da minha avó,
da qual grande parte da família era cliente.
Tinha
também um piano meio desafinado, no qual arrisquei minhas primeiras melodias
(hoje esse piano vive na minha casa, mudou de endereço mas continua meio
desafinado). E um violino antigo, que foi do bisavô da minha mãe ou do tio de
não sei quem, e não me recordo de ter visto fora da caixa, eternamente
pendurada na parede do quarto onde meu avô guardava sua monumental coleção de
discos de música clássica.
Tantos
anos depois da partida dos meus avós, às vezes acontece de me pegar pensando
neles e na infância do seu neto mais velho. Eu, no caso. Essas lembranças têm
um sabor para sempre marcado na minha memória, de mate sem açúcar em garrafa de
Coca, agora delicioso no paladar das minhas recordações. Em momentos assim, até
da geladeira que dava choque eu sinto saudade.
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As crônicas também são publicadas no site do
Diário do Rio, o "jornal 100% carioca"** Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos.

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