A. J. de O. Monteiro
Ah,
os natais de minha infância, tão distantes no tempo, tão presentes na memória.
Naqueles
idos tempos, a máquina comercial ainda não se havia sofisticado tanto quanto
hoje, no processo de indução ao consumo, principalmente junto às crianças.
Havia somente duas datas no ano que mexiam com a imaginação destas, na
expectativa de ganhar presentes: o aniversário e o natal. No aniversário os
presentes eram mais simples e oferecidos por padrinhos, tios e alguns
amiguinhos convidados para o “parabéns” com bolo de velinhas e salgadinhos de
produção caseira, apenas para marcar a data. Eram tempos de famílias grandes e
salários curtos (estou falando das famílias de faixa econômica média-média,
como a minha). Não havia ricos na minha cidade. Havia famílias mais abastadas,
mas não ricos e a interação entre os abastados, os medianos e os pobres era
vista com normalidade, com alguns limites, claro.
Mas,
deixando de lado as considerações econômicos-sociais, falarei do Natal daqueles
tempos na visão da criança que fui. Era o período ano mais aguardado,
principalmente pela expectativa da visita do Papai Noel. O bom velhinho existia
sim e quem ousasse falar o contrário caia imediatamente na antipatia da gurizada.
A nossa cabeça começava a pensar no Natal do “ano que vem”, tão logo o encanto
provocado pelo Natal vivido passava. Vivíamos o ano inteiro em função do evento
e sua magia. O Natal, para nós, era apenas o bom velhinho presenteador – Não
tínhamos consciência dos valores religiosos ou econômicos envolvidos. Acreditávamos
e pronto: era ele que nos dava presente e pronto! Nossos pais até estimulavam a
fantasia que usavam para controlar os pirralhos com “chantagens” do tipo: “Papai
Noel só presenteia quem tem bom comportamento” ... “Ele só da presentes para
quem tira boas notas na escola” ... “Ele anota os atos das criança o ano todo e
a escolha do presente depende do comportamento de cada um”. E quando um filho
ousava sugerir um determinado presente – mesmo que a criança se esmerasse para
merecê-lo – mas o presente escolhido ultrapassasse o limite orçamentário dos
pais, estes tinham o argumento: “Você deve ter feito alguma coisa que
desagradou Papai Noel”... Terrível,
Não?! Mas, logo a frustração era substituída pela expectativa do “natal do ano
que vem”... “Olhe lá, comporte-se e estude muito... quem sabe no próximo ano”...
E
na véspera – 24/12 – ah, meus caros, a adrenalina (e nem sabíamos o que era
isso), atingia o nível máximo! Tão logo terminava a ceia, corríamos para o
quarto dormir cedo, querendo que o amanhecer chegasse logo, mas o sono não
vinha de imediato e ficávamos especulando: “Será que este ano ‘ele’ trás”
aquele carro à pilhas” – dizia eu, enquanto meu irmão suspirava: “aquela
bicicleta me fará o menino mais feliz do mundo” ... Mas o sono vencia pelo
cansaço e dormíamos.
Na
manhã do dia 25/12, com a claridade ainda mal penetrando no quarto rolávamos da
cama para o chão e tateávamos a procura do pacote com o presente e o achávamos.
Papai Noel nunca falhou com a gente. Rasgávamos o pacote muito bem feito e,
felizes, sem nos importarmos se o presente era aquele com o qual sonhamos o ano
inteiro ou não. Exultantes e plenos de felicidade, corríamos para rua para
encontrar nossos vizinhos e comparar os presentes, mas éramos contidos por
nossa mãe de maneira determinante: “Só vão brincar depois de tomar café e
escovar os dentes”. Engolíamos o café, fingíamos escovar os dentes e tomávamos
a rua para o desfile de presentes estalando de novos: meninos de bicicletas com
espelhos retrovisores e lameira; cartucheiras com revólveres de espoleta;
carrinhos a pilhas e bolas de futebol de todos os tamanhos e cores; meninas com
suas bonecas com todas as caras, com ou sem chupetas e algumas que choravam e
falavam mamãe, enfim quase todos os brinquedos ali desfilavam, inclusive a metralhadora
de plástico prateado do Sartório que, quando ele apertava o gatilho emitia o
som de uma rajada e na ponta uma luzinha vermelha piscava no mesmo ritmo. O Sartório
todos os anos “ganhava” a mesma metralhadora e com ela desfilava sempre
orgulhoso (e era bonita mesmo). Comentava-se que, ao fim do dia seus pais
recolhiam o brinquedo e o embalavam cuidadosamente na caixa original para
“presentearem-no” no ano seguinte. A turma zoava (naquele tempo essa gíria não
existia), mas ele não ligava e dizia: ganhei outros, vocês vão ver”! Mas nunca
víamos. E Assim eram nossos natais: Papai Noel, presentes e alegria.
Meu
irmão, imediatamente mais velho que eu, ao contrário de mim – lúdico e cordato
– era racional e de índole contestadora, Ele passou a questionar a existência
real de Papai Noel no que foi seguido pelos mais velhos da turma. Os argumentos
deles – os contestadores – eram fortes e quase convincentes: “Por que, na época
de natal as lojas enchem suas prateleiras de brinquedos novos”? “Por que ele só
traz os presentes à noite enquanto dormimos”?
Mas nós – os lúdicos – rebatíamos: “Ora, em dezembro tem muito mais
aniversários”! “Ora, ele mora muito longe e só consegue chegar aqui de
madrugada”! Nossa turma dividiu-se em contestadores e noelistas, mas com uma
expectativa comum: Os presentes de natal, fossem eles dados por Papai Noel ou
não, eram esperados com a mesma ansiedade.
Com
o tempo a discussão foi amainando e cuidávamos das vidas estudando e brincando
como sempre e, claro, sonhando com os presentes, mas sem discutir de onde
vinham até que em 24/12 daquele ano, meu irmão chegou-se a mim e, com ar
desafiador, disse:
— É hoje...
— É hoje o quê? ...
— Hoje provo que Papai Noel não
existe.
— Tá ficando doido? Como vai
fazer isso? ...
— Vamos preparar uma armadilha...
— Vamos?! Não conte comigo!
— Pois faço sozinho...
E
o dia transcorreu com a normal agitação dos preparativos da ceia: louças e
toalhas novas na mesa; piso lavado e encerado, tudo limpinho e brilhando. Do
quintal vinha o cheiro dos perus mortos de véspera, entupidos de cachaça e dos
pernis de leitões assando no forno de barro. A gente só observava entre uma
admoestação e outra: “Sai daqui, menino, não atrapalha o serviço! Não pega
salgadinho agora, moleque”! E meu irmão me provocando:
— Você sabe por que o escritório
do papai fica sempre fechado nessa época?
— Não, não sei, vai perguntar pra
ele...
— Não preciso perguntar; eu sei!
É para que a gente não veja os presentes que estão guardados lá...
Dei
de ombros encerrando aquela incômoda conversa.
Às
onze horas, terminada a ceia, os sinos da igreja começaram a tocar festivamente
chamando os fiéis para a missa do galo, à qual só os adultos iam. Logo depois
fui me deitar e ele foi para o quintal, voltando em seguida com um saco cheio
de latas vazias: de óleo, de manteiga, de leite em pó... Enfim era um bocado de
latas que ele, encostado a porta, empilhou cuidadosamente.
— O que é isso – perguntei – tá
doido mesmo, né?
— É a armadilha...
— Vamos dormir, maluco, se não
ele não vem...
— Ele vem sim, você vai ver –
respondeu ele sorrindo enigmaticamente.
Dormimos.
Não
sei as quantas acordei atordoado com uma barulheira infernal de latas caindo...
Sentei na cama e vi, no umbral da porta a figura de nosso pai em nada lembrando
o simpático Santa Claus; de pijamas,
tendo nas mãos dois pacotes e com expressão bem pouco natalina no rosto, ao
invés do universal HO-HO-HO, gritava: “Que patifaria é essa?! Estão querendo
matar todo mundo de susto?! Quem foi o autor dessa ideia”?! Não consegui
articular uma só palavra e meu irmão, gaguejando, respondeu: É... É... É uma
armadilha para pegar Papai Noel... Percebi papai se esforçando para não rir... Saiu,
mas parou em seguida dizendo sem se voltar: “Vocês receberão os presente, mas
só amanhã e passarão o dia sem sair de casa como castigo. Agora juntem as latas
e levem de volta para o quintal, sem fazer barulho”. E foi para o quarto
dormir.
Não
voltei a dormir. Passei o resto da madrugada revirando na cama e tendo que
aturar o risinho debochado de meu irmão repetindo insistentemente: “Não
falei?... Não falei?... Agora me diga,
Papai Noel existe”?... Não respondi.
Levantei para o café matinal por insistência de mamãe, não tinha a menor
disposição para encarar um mundo sem Papai Noel, mas, mesmo assim, após o café
mais amargo da minha vida fui para a janela e, com os olhos marejados, fiquei
observando a meninada desfilando com seu brinquedos novinhos em folha.
Sartório, com sua metralhadora de todos anos aproximou-se da janela
perguntando: “Vocês não vem brincar na rua? Não ganharam presentes”? Meu irmão
encarregou-se de responder: “Ganhamos sim, mas só vamos receber amanhã” e
falando ao meu ouvido repetiu: “Não falei?... Não falei?... Agora me diga,
Papai Noel existe”?...
Hoje,
refletindo, acho que aquele Natal foi o começo do fim da minha infância...
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