sábado, 29 de fevereiro de 2020

O TIOZÃO DA IOGA*



Daniel Cariello**


                Dia desses lembrei-me do tiozão da ioga, um sujeito que fazia sua prática diária de exercícios no pátio interno do prédio no qual vivi, em Paris, na gloriosa rue d’Aligre. Rua que, descobri anos mais tarde, também havia sido endereço do não menos glorioso escritor Milton Hatoum. Ele viveu no número 21, nos anos 1970. Eu, no 22, até 2012.
                Ele estava sempre lá (o tiozão da ioga, não o Milton Hatoum, que, até onde sei, não é adepto dessa disciplina), se esticando todo, puxando o braço, dobrando a coluna, torcendo o pescoço, relaxando os músculos sem se preocupar se algum curioso habitante de uma das dezenas de janelas viradas para o pátio o observava. Visitante único do grande e florido espaço, ele dedicava uma hora de seu dia aos exercícios, realizados sem pressa e sem vergonha.
                Eu era um curioso habitante de uma dessas dezenas de janelas e às vezes ficava reparando, admirando sua elasticidade e principalmente sua desinibição, ainda mais flagrantes no duro inverno: enquanto ele se mostrava e enfrentava o tempo gelado, eu me trancava em casa e passava dias sem coragem de colocar o nariz para fora.
                O tiozão da ioga morava no mesmo prédio que eu, mas nunca o cruzei na rua. Ou talvez cruzei, mas não reconheci, pois ele não estava seis andares abaixo de mim e certamente não usava roupa de ioga. Se usasse, provavelmente teria ganho o apelido de “le tonton yogi” de todo o bairro. Não tive portanto a oportunidade de perguntar se não o incomodava fazer sua prática à vista de todos. Não devia incomodar.
                Quando me mudei de volta para o Brasil, esqueci-me da existência da ioga e do distinto tiozão, pois a vida e os boletos foram me trazendo preocupações mais profundas que xeretar a elasticidade alheia. Até chegar o dia em que minha lombar deu ruim e me vi obrigado a introduzir alongamentos e abdominais à minha rotina. Daí pra incluir umas posições de ioga foi um pulo (seguido de um agachamento).
                E não mais que de repente, um dia lá estava lá eu, em pleno terraço da minha residência, uma casa de vila para a qual estão viradas dezenas de janelas dos prédios ao redor, fazendo a postura da montanha, do guerreiro, do triângulo e a do cachorro olhando para cima e olhando pra baixo. E ao olhar para o lado, percebi que havia um curioso habitante do prédio em frente me observando, exatamente como eu reparava o meu vizinho parisiense. Nesse momento, com um misto de surpresa e horror, tive a grande revelação: eu havia me tornado o tiozão da ioga!
            Embaraçado, desfiz rapidamente a posição, com uma certa vergonha de estar sendo examinado por um desconhecido. Logo depois, pensei melhor e decidi assumir de vez minha nova persona. Retornei à prática e caprichei ainda mais nas posturas, nem ligando se ele me olhava ou não. Afinal, se cruzasse o sujeito na rua, ele provavelmente não me reconheceria. E se me reconhecesse… Bem, se me reconhecesse eu talvez também identificaria nele um futuro tiozão da ioga.
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*Lembrando que as crônicas também são publicadas no site do Diário do Rio, o "jornal 100% carioca"

** Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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