Daniel Cariello**
Com
um algodão molhado, removo a purpurina debaixo do olho direito. O carnaval
acabou. As olheiras que vão se revelando enquanto a maquiagem desaparece são
testemunhas e consequência de que foi bom. Ainda há pela cidade resquícios da
festa, porém o corpo já não responde mais ao chamado das marchinhas
insistentes, não balança ao som dos sopros soando suaves, não descadeira no
ritmo da batucada ainda mais atravessada. O carnaval acabou.
É
hora de guardar as fantasias, as antigas e as inventadas para esse ano. Sempre
há criação nova, porque carnaval é uma coisa muito séria e para se fantasiar é
preciso acreditar no personagem, senão ele não funciona. E quem é que continua
o mesmo todos os carnavais?
Voltam
para a caixa o pintor, o ladrão, o bicheiro, o francês, o guerrilheiro, as
perucas, os enfeites, o confete, a serpentina, os arranjos, as flores, as
plumas, os óculos, as máscaras, os chapéus, as asas. Todos são organizados no
papelão que será fechado e guardado em cima da estante, para ser aberto novamente
apenas no ano que vem, afinal, este ano, o carnaval acabou.
O
carnaval acabou, repito, limpando agora a bochecha esquerda, que necessita de
um algodão extra. O brilho sai, mas a lembrança dos cinco dias passados não
pode ser removida: os músicos que enfrentaram o temporal de sexta-feira à noite
e desfilaram sob chuva e continuaram o baile no coreto da praça; o parque
multicolorido no sábado com seus pernaltas e a menina na cadeira de rodas
dançando juntos Pavão Misterioso para minha grande emoção; o irremissível
cordão de domingo de manhã que ninguém sabe onde se esconde e o encontro
redentor com a brass band de dixieland que levou uma centena de felizardos por
outros caminhos e sons; o passeio de segunda-feira pelo centro com os pífanos e
a chuva e mais tarde ao pé do bondinho com a guitarrada e a praia; a estreia na
terça-feira de um grupo tocando apenas Gil e a surpresa com um outro só levando
axé cujo nome ninguém conseguiu descobrir; os dois blocos feministas seguidos
do show do Baiana System na quarta-feira de cinzas que consumiu o resto da
minha energia.
Ainda
procuro juntar um fiapo de força e me arrastar para uma festa final, para dizer
até breve à grega, ao pavão, à palhaça, ao anjo, à oncinha, ao tigrão, à
pocahontas, ao homem-aranha, à mosqueteira, ao bailarino. A verdade é
entretanto inexorável: o carnaval acabou.
Penso
nisso enquanto passo um derradeiro chumaço de algodão, tentando tirar a última
purpurina do rosto, mas a diaba não sai de jeito nenhum.
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*Lembrando que as crônicas também são publicadas no site do Diário do Rio, o "jornal 100% carioca"
** Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos.

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