quinta-feira, 12 de março de 2020

ACABOU*



Daniel Cariello**

                Com um algodão molhado, removo a purpurina debaixo do olho direito. O carnaval acabou. As olheiras que vão se revelando enquanto a maquiagem desaparece são testemunhas e consequência de que foi bom. Ainda há pela cidade resquícios da festa, porém o corpo já não responde mais ao chamado das marchinhas insistentes, não balança ao som dos sopros soando suaves, não descadeira no ritmo da batucada ainda mais atravessada. O carnaval acabou.
                É hora de guardar as fantasias, as antigas e as inventadas para esse ano. Sempre há criação nova, porque carnaval é uma coisa muito séria e para se fantasiar é preciso acreditar no personagem, senão ele não funciona. E quem é que continua o mesmo todos os carnavais?
                Voltam para a caixa o pintor, o ladrão, o bicheiro, o francês, o guerrilheiro, as perucas, os enfeites, o confete, a serpentina, os arranjos, as flores, as plumas, os óculos, as máscaras, os chapéus, as asas. Todos são organizados no papelão que será fechado e guardado em cima da estante, para ser aberto novamente apenas no ano que vem, afinal, este ano, o carnaval acabou.
                O carnaval acabou, repito, limpando agora a bochecha esquerda, que necessita de um algodão extra. O brilho sai, mas a lembrança dos cinco dias passados não pode ser removida: os músicos que enfrentaram o temporal de sexta-feira à noite e desfilaram sob chuva e continuaram o baile no coreto da praça; o parque multicolorido no sábado com seus pernaltas e a menina na cadeira de rodas dançando juntos Pavão Misterioso para minha grande emoção; o irremissível cordão de domingo de manhã que ninguém sabe onde se esconde e o encontro redentor com a brass band de dixieland que levou uma centena de felizardos por outros caminhos e sons; o passeio de segunda-feira pelo centro com os pífanos e a chuva e mais tarde ao pé do bondinho com a guitarrada e a praia; a estreia na terça-feira de um grupo tocando apenas Gil e a surpresa com um outro só levando axé cujo nome ninguém conseguiu descobrir; os dois blocos feministas seguidos do show do Baiana System na quarta-feira de cinzas que consumiu o resto da minha energia.
                Ainda procuro juntar um fiapo de força e me arrastar para uma festa final, para dizer até breve à grega, ao pavão, à palhaça, ao anjo, à oncinha, ao tigrão, à pocahontas, ao homem-aranha, à mosqueteira, ao bailarino. A verdade é entretanto inexorável: o carnaval acabou.
                Penso nisso enquanto passo um derradeiro chumaço de algodão, tentando tirar a última purpurina do rosto, mas a diaba não sai de jeito nenhum.
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*Lembrando que as crônicas também são publicadas no site do Diário do Rio, o "jornal 100% carioca"

** Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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