Daniel Cariello**
— Pai, quero o banheiro! -
anunciou Louise, apressada.
— Pode ir, tá livre.
— Você não entendeu, eu quero que
um dos banheiros da casa seja meu.
— Mas pra que você quer um
banheiro? - espantei-me.
— Ué, pai, pra ficar mais à
vontade, organizar meus produtos, meus xampus, cremes, todas as minhas coisas.
Nem
dez anos ainda e a Louise já quer um banheiro para ela. Dia desses ela ainda
pedia para ver a Galinha Pintadinha, fantasiar-se de Branca de Neve, brincar no
balanço, fazer festa de aniversário de unicórnio, e agora ela quer um banheiro.
Conforme vêm declarando sociólogos renomados e tiozões do whatsapp, o
confinamento acelera mesmo alguns processos. Ao menos aqui em casa.
Em
rápida conferência, a mãe dela e eu concordamos que era possível, sim, a Louise
ter um banheiro só para ela, com a condição de dividi-lo com as eventuais
visitas. Ela reclamou, seu lado francês:
— Non, maman, je ne suis pas d’accord.
Não funcionou. Tentou fazer
manha, à brasileira:
— Ah, paiê…
Também
não deu certo. Sem escolha, aceitou as condições da ocupação sanitária. E foi
toda feliz transferir seus apetrechos e estrear seu novo espaço com uma ducha
quente. Fechou a porta, ligou a música no último volume e cantou no chuveiro
junto e alto com o Now United. Saiu toda animada.
— Pai, você sabe quantos produtos
eu uso no meu banho?
— Omo pra tudo?
— Credo! Você não sabe de nada.
Um sabonete, um xampu, um condicionador, um creme para pentear e um pouco de
lavanda, pra ficar com cheiro bom.
— E o cabelo não cai com tanto produto?
- O que está caindo é o seu.
Muito
contrariado, não concordei e ainda repeti o discurso dos meus pais (e dos pais
deles, e dos pais dos pais…): era pra ela “ter mais respeito”. E para não ter
que dar o braço a torcer, fui tomar uma ducha, no banheiro até então partilhado
pela família. Coloquei o Odessey & Oracle, dos Zombies, e fiquei me
observando no espelho, conferindo o que sobrou da outrora gloriosa cabeleira.
Deixei a água cair sobre mim e fiz discretamente uma das vozes do coro de Care
of Cell 44, enquanto passava o xampu e espiava em seguida a mão, para ver se os
fios haviam abandonado o couro cabeludo. Não tanto quanto eu temia, ainda.
Fiquei
ali alguns minutos, até me cansar e girar a torneira no sentido horário,
cortando o fluxo da água. Esperei um pouco e abri o box, esticando
automaticamente a mão em direção à minha toalha. No entanto, antes de
alcançá-la, percebi que faltava a toalha da Louise, sempre pendurada na frente
da minha. E aí lembrei-me que hoje ela pediu para ter um banheiro, já ensaiando
a liberdade que vai requisitar um dia não muito distante, certamente antes dos meus
cabelos caírem.
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*Esse texto é o segundo da série
"Crônicas isoladas", que continuará durante a quarentena.
** Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br,

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