quinta-feira, 16 de julho de 2020

O ENCONTRO MARCADO



Daniel Cariello  

                Um dia desses, tive um sonho bem estranho. Tomava uma taça de vinho na place de la République, com uma mulher que não conhecia. O papo era agradável, mas de repente surgiu uma contagem regressiva no alto da minha, digamos, tela mental. E indicava que aquele sonho terminaria em cinco segundos. Caramba, cinco segundos? No melhor da conversa? Quando já começávamos a virar fumaça, como o gênio da lâmpada, tive a ideia.
— A gente se reencontra amanhã, aqui mesmo, às 14h.
— Mas onde?
— Na esquina em frente ao KFC.
— Combinado!
                Nunca reparei se havia realmente um KFC em République. Fui conferir no dia seguinte, na internet, e para a minha surpresa havia mesmo, exatamente em uma das esquinas. Nem preciso dizer que a minha manhã foi simplesmente a espera da hora do encontro. Até cheguei adiantado, como não é do meu costume.
                Os termômetros marcavam 5ºC. Moleza para quem já enfrentou -8ºC. Tanto que fiquei sentado nas mesas do lado de fora, um pouco admirado da minha nova condição de imune ao frio. Aí lembrei que estava disfarçado de urso polar, com um grosso casaco de lã e um sobretudo. Bom, quase imune, digamos.
                Eu não tinha muita certeza se ela viria mesmo. Além do mais, não seria fácil reconhecer um rosto que havia visto apenas uma vez e em um sonho.
                Uma senhora passa e para em frente ao cardápio. Não era ela. Uma mais jovem vem em seguida, escutando seu iPod no último volume. Nos olhamos nos olhos. Por um instante, pensei que poderia ser. Mas ela não me reconheceu.
                Observo a paisagem ao redor. No meio da praça, a estátua construída em homenagem à volta da república na França, após o período dos imperadores. As árvores ainda estão secas. A fumaça sai da boca das pessoas quando elas falam. E elas falam os mais diferentes idiomas: inglês, italiano, espanhol, português, línguas orientais, eslavas e tantas outras que não conseguiria entender nem aqui e nem na China. Muito menos na China, aliás
.
                Acredito tê-la visto saindo de um café ao lado. Mas essa passa por mim sem nem me notar. Observo outra, parada, exatamente no lugar onde combinamos. Parece esperar alguém. Olha impaciente para o relógio e, depois, na minha direção. Passo a mão nos cabelos, disfarçando um aceno tímido, mas logo para um carro na sua frente e ela salta para dentro. Dommage.
                O dia está bonito. Céu quase azul. O sol bate nas janelas dos prédios, revelando uma luz transversal e fraca. Apenas o suficiente para fazer dessa uma agradável journée d'hiver.
                E é nesse exato momento que percebo que ela está ao meu lado. Na verdade, já estava quando eu cheguei. Reconheço seu rosto. É o rosto de todos que passam por aqui. É o negro, o japonês, o escandinavo, o latino, todos. São os carros, os ônibus, as vélibs, as motos. O KFC e o McDonald's ao lado de tradicionais cafés e brasseries. A senhora fumando, o senhor com as compras, a moça de óculos fashion, a mãe e a filha levando flores para alguém, os adolescentes com guitarras, o cachorro na coleira, o viajante e suas malas pesadas, o casal abraçado e apaixonado, os pombos misturando-se às pessoas, a velha de cabelo tingido de vermelho, as guimbas de cigarros ainda acesas pelo chão, o jovem pai empurrando um carrinho de bebê.
                São 14h30. Já estou aqui há mais de meia hora. E ela, Paris, há muito mais tempo do que isso.
*Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br


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