sexta-feira, 3 de julho de 2020

OS VIEIRA E A QUARENTENA



 A. J. de O. Monteiro

                Os Vieira compõem uma típica família da classe média brasileira. O pai, Pedro é executivo de uma multinacional e a mãe, Isaura, é advogada criminalista de respeitável atuação. Ambos estão trabalhando “home office”, num confortável apartamento que dividem com os dois filhos: Lisa, uma adolescente de dezesseis anos, cursando o ensino médio e apaixonada por música; Milo tem nove anos, está no ensino fundamental e é fissurado por futebol. Os dois, estão às duras penas e sob coação, acompanhando aulas ministradas à distância pelos respectivos professores que não têm domínio total dessa metodologia, assim como os colégios. Tampouco os alunos têm e muito menos os pais.
                Numa noite dessas, insones, depois de terem percorrido todos os “streamings”, às três horas da madrugada Isaura rompe o silêncio mantido desde que que se recolheram:
— Pedro, ainda acordado?
— Sim, Isaura, o que foi?
— Pedro, estou preocupada conosco, com o rumo que nossa vida está tomando... Sinto que estamos isolados dentro desse isolamento social... Nós quase não nos falamos e não consigo me comunicar com as crianças. Lisa, fora o pouco tempo que dedica aos estudos, vive com o “headphone” nos ouvidos, alheia a tudo que se passa ao redor. Dias desses entrei no banheiro e encontrei uma adolescente penteando os cabelos; pedi desculpa e saí. Só um minuto depois é que me dei conta que não há ninguém além de nós em casa... Era a Lisa sem os “headphones”-  não a reconheci. O Milo, meu Deus! É o dia todo chutando bola num jogo imaginário que nunca termina.
— É Isaura, você tem razão. Conversar aqui em casa é raro e com as crianças está quase impossível! Cobrei da Lisa a indiferença com que ela vem nos tratando e ela simplesmente respondeu: - Sou adolescente, esqueceu? Os adolescentes são assim mesmo”... Fui tentar com o Milo e a resposta foi igualmente desanimadora: - “Espera o intervalo pai, são quinze minutos”... Desisti. Não estou conseguindo estabelecer contato com eles...
— O que você sugere Pedro?

— Regras Isaura. Tanto para nós quanto para eles. Distribuir tarefas para o cotidiano; designar tarefas, estabelecer horários para todas as atividades, inclusive uma ou mais que possamos compartilhar os quatro.
— Já pensei nisso, Pedro, mas acho bastante difícil conciliar atividades comuns. Quais atividades podem ser, ao mesmo tempo, interessantes pra nós dois, para uma adolescente de dezesseis anos e para um pré-adolescente de nove? Nós até podemos sacrificar nossos interesses, mas é muito difícil conciliar os interesses dos dois... Acho que espaçamos demais o tempo entre os dois, mas temos que tentar!
                Passaram o resto da noite elaborando o documento a ser lido logo cedo no café da manhã que conseguiram compartilhar com os dois filhos sonolentos e aborrecidos. As regras foram lidas pelo pai que procurou dar um ar solene e terminativo.
                Ao final da leitura Lisa se Manifestou:
— Muito bem comandante, agora só falta comprar o clarim!
— Clarim pra quê? Perguntaram Pedro e Isaura ao mesmo tempo.
— Ora, para anunciar a alvorada, a hora do rancho, o toque de recolher e todas as demais atividade do quartel...
                Já o Milo reagiu mais positivamente:
— Êba! Na atividade comum podemos disputar um futebol de dois ali na sacada. Eu e papai contra Lisa e mamãe... vai ser legal!
                À noite, no quarto, os dois concordaram que perderam o controle. A família agora está sob nova administração... É administrada por um vírus!

Nenhum comentário: