sábado, 17 de outubro de 2020

CIDADE LABIRINTO



Daniel Cariello*

 

                Pego uma esfirra e um mate grande na Galeria Condor e atravesso a rua para o Largo do Machado, procurando abrigo perto das mesas de dama. Nos fins de tarde, a praça está sempre cheia. Já era assim há 10 anos, quando me mudei para o Rio pela primeira vez. E, sou capaz de apostar, tem sido dessa maneira há muito mais tempo.

                Vejo um pedaço de banco desocupado e é pra lá que me dirijo. Sento de costas para um sujeito carregando um teclado musical e seu suporte e recordo dos motivos que me trouxeram à cidade, há exata uma década: viver meu sonho de criança de gravar um disco e viajar com uma banda. Pego minha caderneta e começo a anotar aquela situação. Daria uma boa crônica. Enquanto escrevo, canto o refrão de Cidade Labirinto, do Phonopop: “Tenho tanto medo e me perco em mim, não vou voltar. Cego até o fim, desço em queda livre. Você, onde está?”

— Você conhece essa música? - Pergunta o rapaz ao meu lado, virando-se para mim de repente.

                Quando nossos olhares se cruzam, reconhecemo-nos imediatamente. Ele e eu somos a mesma pessoa, com 10 anos de diferença a mais para mim. Ou melhor: a menos para ele. Nenhum de nós grita, porque ambos gaguejamos de espanto. Sou eu, hoje, que retomo a iniciativa, disfarçando o nervosismo.

— Conheço bem. Eu gravei esse disco, há quase 11 anos.

                Ele não responde. Fica me olhando. Como era de se esperar, somos iguais, com uma década de sutis diferenças nos separando. Ele tem três brincos e um pouco mais de cabelo. Eu uso óculos e há tempos não consigo disfarçar os pelos brancos na barba. No mais, ambos estamos de jeans, camiseta preta e Converse também preto. Ele, ou eu, toma coragem e desembesta a falar.

— E aí, explodiu? Quantas cópias vendemos? Saiu em vinil, como a gravadora prometeu? Estamos na MTV? Quantos álbuns gravamos? Aprendeu a tocar teclado direito? Rolou turnê com Los Hermanos? Está rico? Gravaram uma música minha?

— Música sua?

— É. Se você compôs uma, quer dizer que um dia será minha também, não é verdade?

— Tem razão.

— Então, responde!

— Calma, cacete! Olha a porra da ansiedade!

— Ei, essa frase é do nosso empresário. Você já foi mais criativo, quando era eu.

— Talvez, mas a frase é boa. E você vai se lembrar muito dela nos próximos anos.

— Quando? Antes das aberturas de novela com nossas músicas? No momento de subir ao palco principal no Rock in Rio? Ao receber o primeiro disco de ouro?

                Por um segundo, pensei em contar para o Daniel de 10 anos atrás que a gravadora não apoiou, o álbum não vendeu, a música não tocou em novela, o clipe passou duas vezes na MTV, a banda não ficou muito tempo no Rio e, a pior notícia, minha conta bancária não é muito melhor do que a dele. Mas, caramba, esperamos tanto tempo por isso, desde a época em que sonhávamos ser o John Lennon, que eu não tinha o direito de estragar nossas aspirações dessa maneira. No entanto, também não ia contar as partes boas, como as viagens pelo país e a excursão europeia no ano seguinte.

— Faz mesmo alguma diferença eu te dar essas respostas?

— Claro que faz!

— Se eu disser que não deu certo, você vai cair fora do grupo?

— De jeito nenhum. Esperei por essa chance a vida inteira.

— E, se eu contar que funcionou, periga você parar de se esforçar. E aí desanda tudo.

— Hum… Você tem razão.

— A gente aprende algumas coisas em 10 anos.

— E perde cabelo também. - Afirma, com sarcasmo.

— Só não deixa de ser irônico.

— Tomara que não! Olha, tô com sede, posso tomar um gole disso aí?

— Pode, claro. Você não tem nenhuma bactéria que eu não tenha tido.

                Ele prova e cospe.

— Mate?

- É. Qual o problema?

— Detesto! Você se lembra da casa da vovó. Sempre tinha mate em garrafa de Coca, naquela geladeira que dava choque. A gente enchia um copo achando que era refri, e na verdade era esse treco aí. Um trauma pra toda a vida!

— Olha, posso te adiantar um fato do seu futuro: você vai começar a adorar.

— Eu? Impossível.

—- Vai ali na galeria e pede uma esfirra com mate. É por minha conta.

— Será? Pensando bem, você não pode estar muito errado.

— Não estou, acredite. Aqui o dinheiro.

— 10 reais? Pra que tudo isso? Vou à lanchonete, não a um restaurante chique.

— Pega. Vai precisar.

— Ok, valeu! Agora, preciso ir. Tenho ensaio daqui a pouco. Não posso me atrasar.

— Hey, hey, my, my, rock’n’roll will never die!

— My, my, hey, hey, rock’n’roll are here to stay!

— Falou! E continua ouvindo Neil Young. Sempre.

— Pode deixar.

                O Daniel mais novo levanta, pega o teclado, o suporte e mais uma mochila cheia de apetrechos e cabos e me aperta em seus braços, antes de partir. Quem o observa o vê abraçando o ar, pois só estou ali em sua imaginação.

                Com a liberdade de ser apenas uma fantasia, continuo andando pela praça. Ao longe, vejo um sujeito que é a minha cara daqui a uns 10 anos. Mas é óbvio que não sou eu, pois seu cabelo está mais ralo e já meio grisalho, e ele está bebendo um suco bem verde, desses que eu não gosto de jeito nenhum.

*Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br



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