Daniel Cariello*
Pego
uma esfirra e um mate grande na Galeria Condor e atravesso a rua para o Largo
do Machado, procurando abrigo perto das mesas de dama. Nos fins de tarde, a
praça está sempre cheia. Já era assim há 10 anos, quando me mudei para o Rio
pela primeira vez. E, sou capaz de apostar, tem sido dessa maneira há muito
mais tempo.
Vejo
um pedaço de banco desocupado e é pra lá que me dirijo. Sento de costas para um
sujeito carregando um teclado musical e seu suporte e recordo dos motivos que
me trouxeram à cidade, há exata uma década: viver meu sonho de criança de
gravar um disco e viajar com uma banda. Pego minha caderneta e começo a anotar
aquela situação. Daria uma boa crônica. Enquanto escrevo, canto o refrão de
Cidade Labirinto, do Phonopop: “Tenho tanto medo e me perco em mim, não vou
voltar. Cego até o fim, desço em queda livre. Você, onde está?”
— Você conhece essa música? -
Pergunta o rapaz ao meu lado, virando-se para mim de repente.
Quando
nossos olhares se cruzam, reconhecemo-nos imediatamente. Ele e eu somos a mesma
pessoa, com 10 anos de diferença a mais para mim. Ou melhor: a menos para ele.
Nenhum de nós grita, porque ambos gaguejamos de espanto. Sou eu, hoje, que
retomo a iniciativa, disfarçando o nervosismo.
— Conheço bem. Eu gravei esse
disco, há quase 11 anos.
Ele
não responde. Fica me olhando. Como era de se esperar, somos iguais, com uma
década de sutis diferenças nos separando. Ele tem três brincos e um pouco mais
de cabelo. Eu uso óculos e há tempos não consigo disfarçar os pelos brancos na barba.
No mais, ambos estamos de jeans, camiseta preta e Converse também preto. Ele,
ou eu, toma coragem e desembesta a falar.
— E aí, explodiu? Quantas cópias
vendemos? Saiu em vinil, como a gravadora prometeu? Estamos na MTV? Quantos
álbuns gravamos? Aprendeu a tocar teclado direito? Rolou turnê com Los
Hermanos? Está rico? Gravaram uma música minha?
— Música sua?
— É. Se você compôs uma, quer
dizer que um dia será minha também, não é verdade?
— Tem razão.
— Então, responde!
— Calma, cacete! Olha a porra da
ansiedade!
— Ei, essa frase é do nosso
empresário. Você já foi mais criativo, quando era eu.
— Talvez, mas a frase é boa. E
você vai se lembrar muito dela nos próximos anos.
— Quando? Antes das aberturas de novela com nossas músicas? No momento de subir ao palco principal no Rock in Rio? Ao receber o primeiro disco de ouro?
Por
um segundo, pensei em contar para o Daniel de 10 anos atrás que a gravadora não
apoiou, o álbum não vendeu, a música não tocou em novela, o clipe passou duas
vezes na MTV, a banda não ficou muito tempo no Rio e, a pior notícia, minha
conta bancária não é muito melhor do que a dele. Mas, caramba, esperamos tanto
tempo por isso, desde a época em que sonhávamos ser o John Lennon, que eu não
tinha o direito de estragar nossas aspirações dessa maneira. No entanto, também
não ia contar as partes boas, como as viagens pelo país e a excursão europeia
no ano seguinte.
— Faz mesmo alguma diferença eu
te dar essas respostas?
— Claro que faz!
— Se eu disser que não deu certo,
você vai cair fora do grupo?
— De jeito nenhum. Esperei por
essa chance a vida inteira.
— E, se eu contar que funcionou,
periga você parar de se esforçar. E aí desanda tudo.
— Hum… Você tem razão.
— A gente aprende algumas coisas
em 10 anos.
— E perde cabelo também. -
Afirma, com sarcasmo.
— Só não deixa de ser irônico.
— Tomara que não! Olha, tô com
sede, posso tomar um gole disso aí?
— Pode, claro. Você não tem
nenhuma bactéria que eu não tenha tido.
Ele
prova e cospe.
— Mate?
- É. Qual o problema?
— Detesto! Você se lembra da casa
da vovó. Sempre tinha mate em garrafa de Coca, naquela geladeira que dava
choque. A gente enchia um copo achando que era refri, e na verdade era esse
treco aí. Um trauma pra toda a vida!
— Olha, posso te adiantar um fato
do seu futuro: você vai começar a adorar.
— Eu? Impossível.
—- Vai ali na galeria e pede uma
esfirra com mate. É por minha conta.
— Será? Pensando bem, você não
pode estar muito errado.
— Não estou, acredite. Aqui o
dinheiro.
— 10 reais? Pra que tudo isso?
Vou à lanchonete, não a um restaurante chique.
— Pega. Vai precisar.
— Ok, valeu! Agora, preciso ir.
Tenho ensaio daqui a pouco. Não
posso me atrasar.
— Hey, hey, my, my, rock’n’roll will never die!
— My, my, hey, hey, rock’n’roll are here to
stay!
— Falou! E continua ouvindo Neil
Young. Sempre.
— Pode deixar.
O
Daniel mais novo levanta, pega o teclado, o suporte e mais uma mochila cheia de
apetrechos e cabos e me aperta em seus braços, antes de partir. Quem o observa
o vê abraçando o ar, pois só estou ali em sua imaginação.
Com
a liberdade de ser apenas uma fantasia, continuo andando pela praça. Ao longe,
vejo um sujeito que é a minha cara daqui a uns 10 anos. Mas é óbvio que não sou
eu, pois seu cabelo está mais ralo e já meio grisalho, e ele está bebendo um
suco bem verde, desses que eu não gosto de jeito nenhum.
*Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos.
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