sexta-feira, 3 de junho de 2022

O ÚLTIMO COBERTOR



Marcelo D'Alencourt*

 

Ando pela rua e vejo jogado no chão um plástico preto. O que será? Saco de lixo? Acho que não. Plásticos pretos abandonados na rua sempre me fazem recordar acidentes e mortes. Alguém atropelado, por exemplo. Simplesmente um enfarte fulminante ou um mal súbito. Parece macabro mas é como vejo. Lembro de, muito jovem, ter visto uma pessoa morta envolta num desses. Todos olhavam. Minha mãe pôs as mãos na minha face e tentou impedir mas, arisco, as driblei pra constatar a miséria que é o fim do homem. Jamais esqueci a cena. Não me recordo da pessoa, mas do plástico...Rua pública, chão frio ou quente e gente bisbilhoteira ao redor esperando o rabecão. E sobram arrogância e vaidade nas pessoas. Pena! Mas e esse aí? O que aconteceu? Ajoelho diante do plástico jogado e oro resignado pra que ele ou ela esteja bem, mesmo que a caminho do buraco ou fogueira que o levarão eternamente pra algum lugar ou não. Levanto, estico as pernas, me recomponho e sigo adiante. Ninguém se atreve a tocar no mórbido material. Deve trazer mau agouro ou coisa parecida. Ele se move, levanta e voa livremente entre os carros e transeuntes num grande balé. Todos se afastam. Me divirto e vou com ele, sem pressa e sem rumo. Até que aparece um gari que, sem opção, o recolhe indiferente. Fim de festa. Aquilo me traz um vazio profundo. Procuro por mim e não encontro. Fiquei pra trás. Tento recuperar o toque da minha mãe no meu rosto. Quanto amor! Não consigo. Quem sou eu nessa estória? Pouco importa. Sigo adiante. Não olho pra trás. Melhor assim.

*Marcelo D’Alencourt é cientista político

3 comentários:

Anônimo disse...

Sensível e triste! Parabéns Marcelor

Anônimo disse...

Puta verdade,

Anônimo disse...

Muito bom