Daniel Cariello**
Um ônibus parte lotado da
rodoviária do Plano Piloto em direção à saída Sul. O ambulante, então, começa a
anunciar seu produto, sem imaginar que teria concorrência.
— Olha a arnica! Senhoras e
senhores, a arnica é a cura pra tudo. Pra gripe, resfriado, mau-olhado, pereba,
pedra nos rins, pedra na cabeça, bicho-de-pé, bicho que não fica de pé, piolho,
pulga, carrapato, dor de ouvido, dor de barriga, dor de corno, nó nas tripas.
Se pagar uma, leva duas. Se pagar duas, leva...
Subitamente, foi interrompido por
um tostão na coxa, aplicado por um sujeito que estava ao lado e tomou a palavra
antes de qualquer possibilidade de reação.
— Leva o diabo, ó, Senhor! Só
você, Deus, pode levar o rei das trevas embora! (Cochichando: “Dá licença, seu
Arnica, que o ônibus está cheio e também preciso fazer minha pregação. Ainda
faltam duas para completar a meta de hoje”.) Com licença, senhoras e senhores.
Meu nome é Jerônimo, sou ex-drogado, ex-alcoólatra, ex-ladrão, ex-infiel e
ex-deputado. Eu sei, cometi muitos erros, mas agora estou aqui para trazer a
palavra…
— Palavra que vou fatiar inteira,
aqui mesmo, na frente de todos.
Quem disse isso (gritou, na
verdade) foi um terceiro homem, do fundo do ônibus, para surpresa dos outros
dois. E tirou de um grande saco um objeto branco, com uma lâmina no meio,
passando-a inadvertidamente perto do nariz de uma velha que já cochilava e nem
viu o que acontecia, ao contrário dos demais passageiros, espantados. Sacou uma
maçã e a descascou ali mesmo.
— Vou fatiar todas as frutas e
verduras com este prático e lindo multidescascador. Dou a minha palavra que ele
funciona de verdade. Vejam como picota a maçã em cinco segundos. E essa
cenoura? Parece papel! Este aparelho é tudo de que você precisa na sua casa,
minha senhora. É tão fácil de usar que até seu marido vai poder ajudar na
cozinha. Desculpem aí, maridos, mas agora vai acabar a moleza…
— Moleza terá quem se tratar com
esta planta maravilhosa — interrompeu o seu Arnica. — É a cura pra todos os
males...
— Os males só quem cura é o
Senhor — interpelou o ex-tudo. — Um sujeito sem fé é um sujeito sem força…
— Sem força nenhuma, eu prometo,
você vai descascar tudo sem fazer força — entrecortou o vendedor. — É só aqui
na minha mão.
O jogral involuntário ainda
continuou por alguns minutos e arrancou aplausos dos passageiros quando os
três, sincronizados também na desistência, resolveram
descer do ônibus ao mesmo tempo.
Sem convencerem doentes, fiéis ou
clientes, mas tendo arrebatado uma plateia entusiasmada, olharam-se e souberam
que teriam mais sucesso se trocassem a arte da venda pela venda da arte. Mas
deram as costas e seguiram seu caminho solitário.
Publicado originalmente em Veja Brasília de 25/02/2015